Barros Basto: o Dreyfus português

Barros Basto: o Dreyfus português

Menos conhecida que a de Alfred Dreyfus, a história de Barros Basto também é sobre o desejo de manter a fé judaica e os sacrifícios que se deve pagar por ela – outro triste exemplo do antissemitismo europeu do século XIX

Por: David Alejandro Rosenthal

O capitão Artur Carlos de Barros Basto é conhecido por ter sido injustamente caluniado e demitido do seu posto militar. Não muito diferente de Alfred Dreyfus, um oficial de artilharia francês de ascendência judaica cuja condenação em 1894 sob a acusação de traição se tornou um dos dramas políticos mais polarizadores da história francesa moderna.

Esses dois homens, importantes militares e heróis condecorados, tornaram-se alvo do antissemitismo europeu, que se acentuaria em meados do século XX, com o início da Segunda Guerra Mundial.

Barros Basto é uma figura desconhecida fora de Portugal, ao contrário de Dreyfus, mas a sua história é tão interessante como a dele, ou até mesmo mais. Barros Basto dedicou-se a escrever sobre temas judaicos e ainda mais importante foi o seu trabalho como líder comunitário. Além disso, ele foi uma grande contribuição para a luta dos Conversos – judeus sefarditas que tinham sido forçados a se converterem ao catolicismo. Aliás, o capitão Barros Basto foi um deles.

Em Portugal, ocorreu um fenómeno histórico muito especial, pois a concentração de sefarditas era tão alta que, até hoje, os portugueses são em grande parte descendentes daqueles “marranos” – judeus convertidos – que tiveram pouca escolha em 1497, quando foram obrigados a se converterem. Como em Espanha, os judeus enfrentaram um grande dilema: ir embora, com tudo o que isso implicava, ou adotar a nova fé.

Um bom número de judeus decidiu permanecer na sua terra natal, pelo que tiveram que ser batizados e mudar os seus nomes. Alguns tornaram-se os cristãos assíduos, misturando-se com a nobreza e com os “cristãos velhos”, e até se tornaram importantes membros do clero católico. No entanto, outros, apesar de se terem convertido, mantiveram a sua identidade judaica ao mesmo tempo em que criavam uma nova, o que lhes permitiu passar despercebidos entre seus novos correligionários – fossem eles cristãos novos ou velhos.

A família de Barros Basto manteve as suas raízes hebraicas ao longo dos séculos e tinha clareza sobre isso. Assim, o seu avô, antes de morrer, revelou-lhe a verdade sobre a sua origem sefardita passada e disse-lhe que desejava morrer como judeu.

Havia tradições, como as velas de Shabat, com as quais o jovem Artur Carlos estava familiarizado desde criança, mas estas faziam parte de sua memória, assim como da memória dos seus antepassados. Até que um dia, em Flandres, na Bélgica, Barros Basto entrou na tenda de um oficial francês num sábado, viu duas velas a iluminar o local e perguntou qual era o motivo. A resposta era óbvia. E esse momento foi tão decisivo que ele quis retornar à antiga fé dos seus antepassados.
Barros Basto, que nasceu em Amarante em 1887 como católico, decidiu enveredar pelo caminho de uma nova fé: a mesma que séculos atrás tantas pessoas foram obrigadas a abandonar, incluindo os seus antepassados. A lei mosaica, que também havia sido mantida, de uma forma ou de outra, entre os filhos dos forçados à conversão, tornar-se-ia a meta de vida do capitão, acompanhada do interesse em fazer os outros também retornarem às suas origens hebraicas.
O arquivo nacional de Portugal na Torre do Tombo tem mais de 40.000 arquivos da Inquisição, cujo principal objetivo era perseguir os “cristãos novos” acusados ​​de viver secretamente como judeus ao longo dos séculos, apesar de o rei Manuel I de Portugal ter prometido aos convertidos que não seriam investigados pelas suas práticas religiosas na esfera privada, o que os encorajou a manter os rituais e tradições de sua antiga religião, que em muitos casos sobreviveu à passagem do tempo.
O processo de conversão ao judaísmo do capitão Barros Basto – que também era maçom – começou no Porto e em Lisboa, na Sinagoga Shaarei Tikvah, mas sem sucesso. Marrocos seria então o lugar da sua conversão e retorno ao judaísmo.
Na cidade de Tânger ocorreu a conversão formal. Depois de regressar a Lisboa, casou-se com uma judia daquela comunidade, que antes não o tinha aceitado. Assim, Lea Israel Montero Azancot tornou-se Leah Barros. E, a partir desse momento, ela iniciaria a campanha de redescoberta e reaproximação dos cripto-judeus.
Barros Basto sentira-se judeu antes mesmo de se converter, em 1920; no entanto, ele encontrou dificuldades ao longo do caminho, e quase teve que ir até à Argélia para prosseguir com a sua conversão. Ele deve ter pensado em todos os outros que, como ele, eventualmente desejariam retornar à fé de seus pais.
No Porto, onde não havia mais de 20 judeus, o capitão Barros Basto, ou Abraham Israel Ben Rosh – o seu nome hebraico – fundou um jornal, que chamou de “Halapid” – A Tocha – e começou a viajar para as aldeias vizinhas onde se podiam encontrar Conversos, a fim de fundar uma nova comunidade com essas pessoas e construir uma sinagoga que mais tarde seria chamada: Mekor Haim – fonte de vida.
Barros Basto tinha aprendido hebraico antes da sua conversão, a tal ponto que mais tarde ensinou a língua dos seus antepassados ​​na Universidade do Porto. Interessou-se também pela história judaica medieval portuguesa, entre outros assuntos. Ao longo da sua vida, escreveu inúmeras textos sobre temas judaicos.
O plano inicial e ideal de Barros Basto era captar a atenção dos Conversos e atraí-los para o seu projeto comunitário-religioso. De facto, começou muito cedo a angariar os fundos necessários para a construção de uma sinagoga. O projeto era tão ambicioso e estruturado que, juntamente com outros membros da sua comunidade, estabeleceram uma yeshiva, com o objetivo de ensinar aos Conversos os preceitos da Lei de Moisés e a história do povo hebreu. Essa yeshiva funcionou durante nove anos.
Em Trás-os-Montes, no norte de Portugal, na fronteira com Espanha, na zona do importante rio Douro, os Conversos encontravam-se em aldeias rurais. Chaves, Bragança e Mirandela são algumas das cidades que a sub-região de Trás-os-Montes incluiu. O capitão Barros Basto percorreu este território em busca dos seus irmãos escondidos e perdidos, outrora obrigados a isolarem-se em comunidades muito pequenas e fechadas.
A situação política em Portugal mudou quando ocorreu um golpe de estado militar em 1926, devolvendo à Igreja Católica uma posição muito importante na sociedade. Não seria do interesse da Igreja que os “marranos” voltassem ao judaísmo. Da mesma forma, a ditadura fascista de Oliveira Salazar assumiu o poder por volta de 1932, impondo a tradição católica e o conservadorismo dos seus costumes como regime, semelhante ao caso espanhol com o Generalíssimo Franco.
Todos os esforços do capitão Artur Carlos encontraram um grande obstáculo quando uma carta anónima denunciou aos seus superiores um comportamento imoral da sua parte. Acusado de homossexualidade e de perverter a juventude da yeshiva, foi aberto um julgamento contra ele.
Essa calúnia não teve sucesso, mas trouxe à luz que o próprio capitão havia circuncidado – brit milah – junto com um médico, os seus alunos da yeshiva. Como resultado, 9.000 cripto-judeus se voltaram para o judaísmo, graças a ele. Em 1937, foi expulso do exército, por ser considerado moralmente inapto para continuar na instituição. Não podia ser acusado de homossexual, mas podia ser acusado de judaísmo, pois a Inquisição, que flagelara de maneira atroz toda a Península Ibérica, sem dúvida deixara um resquício antijudaico.
Como Dreyfus, o seu judaísmo pesou muito na hora de assinar a sua demissão. No entanto, Dreyfus foi defendido por Émile Édouard Charles Antoine Zola, destacado escritor francês, no seu artigo J’Accuse – Carta ao Presidente da República – no jornal L’Aurore.
Este apelo, em forma de carta aberta, foi a chave para a reintegração do cargo, nome e honra do capitão Dreyfus. No caso do capitão Barros Basto, nunca houve revisão do caso em vida e ele morreu com a desonra que lhe foi causada pelos inimigos do judaísmo.
Apesar do revés, o capitão Barros Basto conseguiu em 1938 inaugurar a sinagoga, que se tornara seu sonho: Mekor Haim, ou a Sinagoga Kadoorie (a maior de toda a Península Ibérica), em homenagem aos seus principais patrocinadores, uma proeminente família judia iraquiana estabelecida em Xangai, na China. Esses judeus Mizrahim decidiram erguer o edifício em homenagem à sua matriarca – Laura Kadoorie – que descendia de judeus expulsos de Portugal em 1497.
Esta sinagoga não conseguiu concentrar a comunidade de Conversos que Barros Basto esperava. O escândalo e, finalmente, a sua destituição do cargo também fizeram com que os seus alunos e as famílias que ele lentamente tinha trazido ao judaísmo ficassem com medo e no final não quisessem se associar a Mekor Haim.
Desde o início, a Inquisição criou um fenómeno de separatismo e desconfiança por parte dessas pessoas. Terem sido obrigados a se converterem e, mais do que isso: terem sido perseguidos, julgados e até condenados à morte, eram razões suficientes para se quererem afastar daquele mundo.
No entanto, a sinagoga serviu um grande propósito após a Segunda Guerra Mundial, tornando-se um abrigo para centenas de judeus da Europa de Leste que fugiam do horror do regime nazi. Barros Basto, portanto, também poderia ser considerado um “justo entre as nações”.
A Sinagoga do Porto é a obra mais importante do Capitão Barros Basto. Representa a liberdade, a luta constante e o grande carinho que o seu fundador tinha pela sua causa, juntamente com as famílias Ashkenazi da comunidade do Porto que o apoiaram neste nobre projeto.
O capitão Barros Basto morreu no Porto em 1961, levando para o túmulo a injustiça de ser acusado do “crime” de ser judeu. Ele foi o líder da sua comunidade até o fim. Ao contrário de Dreyfus, de uma forma ou de outra, Barros Basto morreu de desgosto moral.
Nunca foi reintegrado no exército, nem o seu caso foi revisto até 2012, data em que o Estado português reintegrou postumamente Barros Basto como capitão, graças aos esforços da sua neta Isabel Ferreira Lopes. Então, viva a memória de Barros Basto.
Pode ler o artigo original em inglês aqui

 

A “Rainha Esther do século XVI”, ou “La Senhora”

A “Rainha Esther do século XVI”, ou “La Senhora”

Por: David A. Rosenthal (*)
“A Rainha Esther do século XVI” ou “La Senhora” (HaGevirah)
“Doña Gracia, Doña Gracia, Doña Gracia Nuestro Amor / Doña Gracia, Doña Gracia, Doña Gracia Por Favor”.  Canto sefárdico de Bnei Anusim.
Janna ou Hanna Nasi (mais tarde Gracia, como Janna significa dar graças em hebraico erudito), conhecida em Portugal, Espanha, Itália e Turquia como “A Senhora”, “A Rainha” ou “A Senhora”, não é apenas a mulher judia mais famosa da Renascença, mas também uma das mulheres mais importantes deste período na Europa e no Império Otomano.
Ela foi precursora dos bancos europeus – a primeira mulher banqueira – e do Sionismo, porque 500 anos antes sonhou com um estado para os judeus em Israel. Era também da dinastia davídica, ou seja, descendente da Casa de David – Malchut Beit David – pois o seu apelido Nasi significa “príncipe” e alude à figura do “Patriarca dos Judeus” no exílio.
Lisboa, 1510. Esta é a data e local de nascimento de Dona Gracia, após o exílio judeu espanhol, devido à vil expulsão dos judeus dos reinos de Castela e Leão, assim como de Aragão. No entanto, Portugal repetiria esta história, pois os judeus seriam expulsos em 1497 por ordem do Rei D. Manuel I de Portugal, incitados pela Monarquia Hispânica ou também conhecidos como a “Monarquia Católica” e a Igreja Católica. A única opção em ambos os casos era a conversão ao cristianismo.
Embora a família aristocrática de Dona Gracia Mendes – como ela ficaria mais tarde conhecida – tivesse mudado para o que restava da Península Ibérica “livre” da perseguição dos judeus, estes tiveram de se converter ao catolicismo. Como resultado da situação que se tinha espalhado por toda a península, até Portugal. Além disso, apenas cerca de 600 famílias, das cerca de 100.000 que fugiram de Espanha para Portugal, puderam instalar-se, uma vez que foi necessário pagar uma taxa elevada para obter uma autorização de residência permanente da coroa de João II de Portugal, apelidado de “príncipe tirano”.
Assim, o nome da pequena Janna, nascida como uma “nova cristã” era Beatriz de Luna Miques. A Casa de Luna – de nobre dinastia – era uma família judaica convertida de Pamplona, sediada em Aragão – o Nasí originalmente – com influência na sociedade e na política. O seu pai foi Shmuel Nasí (Ávaro de Luna Miques) e a sua mãe Felipa Mendes (Benveniste), casados em Lisboa.

A família Mendes tinha financiado as expedições de Vasco da Gama à Índia, o que lhes trouxe uma enorme riqueza ao explorar a nova rota comercial da Europa para a Índia. Tinham também financiado a expedição de Pedro Álvares Cabral (originário de Belmonte e filho de um novo cristão) que fez de Portugal o descobridor de quase todo um continente: o Brasil. Entre todos os negócios comerciais e financeiros da família Mendes estava o financiamento das coroas de Portugal, França e do Sacro Império Romano. Além disso, subornaram a Igreja – o Vaticano – em parte para atrasar a Inquisição em Portugal e também para que os antigos judeus em Espanha e Portugal não fossem perseguidos por períodos de tempo.
Dona Gracia foi também uma das mulheres mais poderosas e ricas da Europa renascentista. Era uma mulher de negócios, banqueira, filantropa, diplomata, pré-sionista e também activista política na altura. Uma verdadeira “Eshet Chayil” – uma mulher virtuosa – foi Dona Gracia Mendes Nasi, que sempre defendeu os seus irmãos e irmãs mais desfavorecidos e os protegeu como a grande Senhora que ela era; como a grande matrona hebraica; como uma mãe sefárdica do seu povo. Ela era como uma rainha para os judeus hispano-portugueses exilados, de facto, ela também é lembrada como “a Rainha Ester do século XVI”.
Em 1528, aos 18 anos de idade, “A Senhora” casou com Don Francisco Mendes Benveniste, que era seu tio materno, e um ânus, ou seja, outro “cristão-novo” – novo cristão -, e adoptou o seu apelido Mendes (tradicional convertido sefárdico), chamando-se a si própria Beatriz Mendes. Francisco Mendes era um poderoso comerciante e banqueiro, o seu apelido original judeu era “Benveniste”, de uma família rabínica. O seu bisavô era Don Abraham Benveniste de Castilla, tesoureiro, conselheiro real, rabino e jurista.
Na realidade, Don Francisco Mendes Benveniste era o “Rab Ha-Anusim”, ou seja, “o rabino dos convertidos”. Do mesmo modo, a família Mendes era a contraparte portuguesa ou rival da famosa família Medici italiana, no sector financeiro renascentista. Dom Francisco Mendes Benveniste, conhecedor da Torah e protector dos judeus convertidos, professou o seu amor pelo judaísmo e imbuiu a sua esposa, a jovem Sra. Gracia, com este amor, bem como a instigou a realizar sempre este trabalho e dever em nome dos seus irmãos mais desfavorecidos, que tinham sofrido intermináveis adversidades no novo exílio.
Em 1538, ficou viúva e herdou metade da grande fortuna do seu marido, que acumulou juntamente com o seu irmão Diogo (Meir) Mendes, no comércio de especiarias – especialmente pimenta preta – das Índias Orientais e de Portugal, bem como um banco com agências em toda a Europa e no Mediterrâneo. Quando a Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536, mudou-se com a sua filha Ana (Reyna) Mendes e a sua irmã Brianda de Luna para a rica cidade de Antuérpia, então uma região flamenga da Holanda espanhola.

Em Antuérpia – o principal centro financeiro da Europa -, dona Gracia criou um nome comercial de sucesso, gerindo o ramo comercial e financeiro que lhe foi deixado pelo seu marido. Ela também continuou a trabalhar com o seu tio e cunhado Diogo Mendes, que casou com a sua irmã Brianda, que mais tarde herdaria a sua fortuna rica. Assim, tanto Dona Gracia como a sua irmã Brianda estavam à frente da segunda fortuna europeia.
Dona Gracia tinha sob o seu poder uma das maiores fortunas da Europa, e graças ao poder semelhante que isto lhe deu, financiou o resgate de milhares de anusim ou “marranos” da Inquisição hispano-portuguesa e mais tarde da Inquisição Romana, promovida pelo Bispo Carafa, mais tarde Papa Paulo IV.
Em 1545, Dona Gracia fugiu de Antuérpia para a República de Veneza, juntamente com a sua irmã Brianda e a sua filha Reyna, pois a Holanda fazia parte do Império Espanhol e a Inquisição estava a ameaçá-la. De facto, o seu falecido marido foi acusado de ser um judeu criptográfico e andava atrás dela, pelo que teve de pagar um pesado suborno e também conceder um empréstimo ao Imperador Carlos V. Após o exílio da família Mendes em Veneza, todos os seus bens foram confiscados em Antuérpia, embora José Nasí ou João Micas, sobrinho de Dona Gracia e mais tarde Duque de Naxos, tenham intercedido e resgatado grande parte dos bens confiscados.
As irmãs Luna instalaram-se no Grand Canal em Veneza, onde tinham transferido a sua fortuna. No entanto, após uma disputa entre as irmãs, o tribunal de assuntos estrangeiros de Veneza (Giudici del forestier) decidiu que Donna Grazia tinha de entregar metade da sua fortuna ao tesoureiro veneziano.
Além disso, Brianda acusou Donna Grazia e a sua filha Anna de Judaísmo e foram capturadas, mas uma amiga de Donna Grazia intercedeu em seu nome, sendo o amigo Sultão Suleiman “o Magnífico”. Os venezianos suspeitaram que Donna Grazia fugiria para Constantinopla, mas ela preferiu ir para a vizinha Ferrara, onde o Duque Ercole II de Este tinha feito um convite formal para se estabelecer nas suas terras.  O Duque de Ferrara era filho de Lucrécia Borgia e era também casado com Renata de França, filha de Luís XII, Rei de França, que, como protestante, foi perseguida como herege pela Igreja, tal como o foi Dona Gracia.
Em Itália, Dona Gracia será conhecida como Beatriz, e embora houvesse um importante bairro judeu em Veneza, a colónia judaica em Ferrara era proeminente e gozava de uma posição bastante privilegiada, ao contrário da situação em Veneza. Em Ferrara, Beatrice Mendes, deixando para trás os laços e as vestes da Nova religião cristã que tinha sido obrigada a aceitar, voltou à sua fé hebraica, ou melhor, podia agora chamar-se livremente Gracia Nasi (viúva de Benveniste) e professar o seu ansiado judaísmo e ser uma luz para o seu povo exilado de Sefarade.
Assim, a Bíblia Ferrara – traduzida em judaico-espanhol – editada por Abraham Usque e Yom Tova ben Levi Athias, e Consolação das tribulações de Israel (“Consolaçam às tribulaçoens de Israel” – a mais importante obra judaica escrita em português -) por Samuel Usque, são dedicadas a “A Illustrissima Senhora Dona Gracia Nasci”. Dona Gracia nunca deixou de financiar sinagogas, escolas e livros para resgatar e restabelecer o judaísmo exilado e perseguido da época. Foi também uma mecenas da arte renascentista, financiando artistas da estatura de Michelangelo Buonarroti e Ticiano.
No ámbito da Contra-Reforma Itália, em 1552 Dona Gracia e a sua filha partiram (juntamente com a sua comitiva e guarda) para a capital do Império Otomano: Constantinopla. Aí ela instalou-se numa mansão no então bairro europeu de Galata, que tinha sido em tempos o bairro judeu no século XI. Em Constantinopla, Dona Gracia financiou uma multidão de projectos a favor dos judeus, tais como hospitais, escolas, yeshivas, sinagogas e recebeu também centenas de exilados da Inquisição, convidando-os mesmo para almoçar na sua casa, por vezes até quase 100 pessoas.
Doña gracia era uma “ex-convertida”, pois teve de se converter ao catolicismo, mas tinha regressado ao seu judaísmo. Assim, o seu trabalho era apoiar ex-convertidos como ela, que tinham tido de aceitar a fé católica. De facto, ela usou sempre a sua enorme rota comercial através da Europa para trazer os perseguidos para a “terra livre”, em alguns casos, infelizmente, queimados na fogueira. Além disso, os bens e recursos dos exilados podiam ser trocados, graças ao banco de Mendes que operava nas grandes capitais.
Em 1555, o primeiro “papa da Contra-Reforma”, Paulo IV, atacou os ex-judeus convertidos de Ancona e prendeu-os. Bem, os judeus de Constantinopla, liderados por Donna Grazia, intercederam junto do homem mais poderoso, Sultão Süleyman, em nome dos judeus de Ancona. Assim “o Magnífico”, um querido amigo dos judeus, mediou com os governadores de Ancona para libertar os cativos. No entanto, alguns Anusim – os forçados – foram queimados na fogueira ou vendidos como escravos em Malta, e outros que conseguiram fugir para a cidade vizinha de Pesaro.
Em suma, em 1560, Donna Grazia, juntamente com o seu sobrinho e parceiro comercial Joseph Nasi, promoveu a ideia de um Estado soberano moderno para os judeus na terra histórica de Israel. Bem, os Nasí, depois do Sultão Süleyman, eram os mais poderosos, pelo que lhes foi concedido o cargo de governadores da cidade de Tiberíades, onde começaram a estabelecer as condições para a transformar num Estado judeu.
Dona Gracia e o seu sobrinho, o Duque de Naxos, também financiaram o projecto de Aliyah, ou seja, a ascensão à terra de Israel, e trouxeram judeus de cidades europeias, inicialmente italianos. Dona Gracia tinha também solicitado a Governação de Jerusalém, mas o Sultão preferiu conceder-lhe Tiberíades.
Foi em Tiberíades que Dona Gracia quis viver os seus últimos anos, pelo que ordenou a construção de uma casa, para quando finalmente fez “Aliyah”. No entanto, o plano de estabelecer uma nação judaica em Tiberíades, bem como o plano de Dona Gracia de morrer na terra dos seus antepassados, não se concretizou, pois a cidade não se tornou um estado judaico. Isto também se deveu à recusa cristã e muçulmana de estabelecer uma “nação hebraica” independente em Israel e à morte prematura do padrinho desta causa, Sultão Süleyman.
“La Senhora” morreu em 1569. Ela é em última análise uma “tzadeket”, ou seja, uma mulher justa de Israel e uma predecessora do Sionismo. Que o seu trabalho, memória e legado sejam sempre recordados.
(*) David A. Rosenthal é um cientista político, jornalista, colunista e analista internacional. Siga-o no Twitter @rosenthaaldavid.
Descendentes criptojudaicos estão em contacto, mas ainda há obstáculos

Descendentes criptojudaicos estão em contacto, mas ainda há obstáculos

Por: Sasha Rogelberg

“Shabbat Shalom a Todos” escreveu um membro do grupo do Facebook Sephardic and Crypto-Jewish Research para um público de mais de 400 membros, muitos dos quais vivem no norte do México ou no sudoeste dos Estados Unidos. 

O post aparece por cima de acima de uma consulta para encontrar um livro sobre guardas da marinha espanhola publicado em 1954 em Madrid e por baixo de uma imagem antiga de um manual escolar mostrando uma mulher a ser levada perante a  Inquisição na Cidade do México.

O conteúdo dos posts do grupo é variado, mas todos dizem respeito ao criptojudaísmo, a prática secreta do judaísmo pelos judeus sefarditas em Espanha e suas colónias durante e depois da Inquisição.

Numa época em que os católicos continuam a ser a grande maioria nos países de língua espanhola e na Península Ibérica, os judeus desses países permanecem estigmatizados, embora a Inquisição tenha terminado há séculos. É por isso que esses grupos do Facebook são preciosos para tantas pessoas que estão agora mesmo a descobrir as suas origens sefarditas depois das mesmas lhes terem sido ocultas durante gerações.

Ronit Treatman, da Filadélfia, (na foto) é membro de mais de 25 desses grupos, incluindo Sephardic and Crypto-Jewish Research.

Em 2012, Treatman descobriu a sua própria história através de testes de ADN: Uma descoberta surpresa indicou que alguns membros da família se tinham mudado de Espanha para a Polónia.

“Isso mostrava que parte deles foi forçada a converter-se e teve que ir para o Brasil”, disse Treatman.

“A descoberta de origens judaicas, particularmente de ascendência criptojudaica, tornou-se mais comum agora, com os  testes de DNA mais acessíveis”, disse Treatman. Empresas como a Family Tree DNA podem pesquisar mais especificamente as as raízes sefarditas.

Treatman descreve-se como “o outro lado do espelho”. Enquanto tantos outros membros dos grupos foram educados como católicos e estão agora a tentar aprender mais sobre as suas raízes judaicas, Treatman sempre soube que era judia (o seu pai foi diplomata israelita). 

Ao longo de quase uma década a conhecer pessoas nesses grupos, Treatman tem conseguido ajudar dezenas de pessoas a encontrar textos, recursos e membros da comunidade, e tem reunido descendentes criptojudaicos de volta ao judaísmo.

Os judeus da Filadélfia estão habituados a ajudar descendentes de criptojudeus, também chamados de Conversos, Bnei Anusim ou Marranos,  a palavra espanhola que quer dizer “porco” e que, na opinião de Treatman, é uma terminologia inadequada para o grupo.

A Congregação Mikveh Israel, a sinagoga mais antiga da Filadélfia, foi fundada por judeus espanhóis e portugueses através de uma sinagoga sefardita em Amsterdão.

Na década de 1920, foi a primeira sinagoga sefardita a responder aos pedidos do Comité Português de Marranos, “para que sejam aplicados fundos no retorno ao judaísmo de mais de 14.000 marranos que vivem em Portugal, como cristãos em público e como judeus secretamente, há mais de quatro séculos”, escreveu o líder religioso de Mikveh Israel Leon H. Elmalah numa carta de 31 de outubro de 1926.

O apelo foi feito em parceria com a Comunidade Sefardita de Londres, a Associação Anglo-Judaica e a Aliança Israelita, explicou a carta. A doação feita pela Mikveh Israel seria o equivalente a USD $ 50.000 de hoje, disse o rabino da Mikveh Israel, Albert Gabbai.

“Como somos uma sinagoga espanhola e portuguesa, e traçamos a nossa ascendência até aos judeus que escaparam — porque somos uma congregação que segue essa tradição iniciada por esses judeus, foi natural para nós ajudá-los”, disse Gabbai.

Gabbai visitou a comunidade judaica portuguesa, que agora tem entre 50 e 100 membros, em 2017, décadas depois dela ter recebido uma educação judaica por parte de rabinos israelitas enviados para ensinar os feriados judaicos.

A viagem foi animadora, disse Gabbai, pois conseguiu ver o que a ajuda da Mikveh Israel 90 anos antes  foi capaz de fazer. Mas ainda há na zona preconceitos em torno dos judeus, disse ele.

Na viagem, Gabbai viu um turista numa igreja — erguida no lugar de uma antiga sinagoga — que perguntou o que tinha acontecido com os judeus que deixaram a sinagoga.

“O guia disse: ‘Nós convidámo-los a deixar o país’”, conta Gabbai.

O estigma contínuo reafirma o trabalho de Treatman, disse ela. Também impulsionou o trabalho de um amigo de Treatman, que ela conheceu num evento criptojudaico no Facebook: Keith Chávez, natural de Albuquerque, Novo México, que descobriu que era judeu aos 13 anos.

“A minha bisavó estava a morrer. Ficou acamada por um longo período de tempo antes de falecer, e queria falar comigo, com o meu irmão e com o meu primo”, disse Chávez. “Então convocou-nos juntos e disse: ‘Somos Sefarditos.’ Somos Sefarditos.”

Em retrospetiva, a origem judaica de Chávez fazia sentido para ele, apesar de, durante a infância, ter  frequentado com o pai uma igreja católica. Enquanto a maioria das mulheres católicas do Novo México varria a casa empurrando o lixo para fora da porta, a sua bisavó usava uma pá, já que varrer para fora da porta violava as leis da mezuzá (embora a família nunca tivesse tido mezuzot nas ombreiras das suas portas). Ela insistia em obter e preparar a carne para as refeições do fim de semana de uma maneira que se assemelhava à lei kosher.

A história de Chávez assemelha-se à de muitos outros descendentes de criptojudeus, mas ele ainda se considera diferente. 

Muitas outras pessoas com origens criptojudaicas negaram firmemente as suas origens familiares, dando preferência à sua educação católica. Se quiserem aprender mais sobre judaísmo, poderão enfrentar obstáculos por parte de alguns líderes judeus que não consideram os descendentes de criptojudeus como sendo judeus válidos sem passarem por uma conversão.

Agora professor adjunto de história e antropologia na Universidade do Novo México, Chávez tem ensinado sobre a presença de descendentes de criptojudeus no sudoeste dos EUA e a sua própria Inquisição, que só terminou no século XIX.

Como Treatman, Chávez é administrador de vários  grupos criptojudaicos no Facebook. O Facebook ajudou a mudar a situação dos descendentes de criptojudeus que procuram conectar-se, disse Chávez, embora essas conexões permaneçam menores do que ele queria.

A certa altura, ele ajudou uma mulher finlandesa, que tinha acabado de descobrir a sua ascendência judaica, a conectar-se com um rabino em Helsínquia. Depois o rabino acabou por ajudá-la a fazer o processo de conversão.

“Senti-me muito bem,” disse Chávez. “Porque ela voltou para casa.”

Pode ler Aqui o artigo original em inglês.

Um passado judaico secreto: a jornada multinacional da genealogista Genie Milgrom para descobrir as suas raízes

Um passado judaico secreto: a jornada multinacional da genealogista Genie Milgrom para descobrir as suas raízes

Por: Eve Glover

A genealogista premiada, autora e palestrante Genie Milgrom cresceu como católica, mas a partir dos onze anos sentiu instintivamente que era judia.

Nascida em Havana, Cuba, em 1955, Milgrom frequentou escolas católicas em Cuba e nos Estados Unidos, mas “sentia que algo estava errado… É difícil explicar, mas a maioria das pessoas que vêm desse tipo de raízes [passam por] esse fenómeno”, disse ela à The Jewish Press.

Genie casou com um católico cubano quando era muito jovem e teve dois filhos. Aos 28 anos, no entanto, sentiu-se compelida a mudar de rumo. “Eu simplesmente não posso continuar a fazer isto”, recorda. “Sempre fui uma pessoa espiritual, uma pessoa religiosa, e estava a ter muitos problemas com o dogma da religião católica.”

Nos sete anos seguintes, mudou radicalmente sua vida ao divorciar-se e converter-se ao judaísmo ortodoxo. Ela tinha um pressentimento de que já era judia de nascimento – mas nenhuma prova.

Morando em Miami, Milgrom mergulhou na comunidade judaica, tornando-se presidente da comunidade e tesoureira da sinagoga local Young Israel. Através de seu trabalho na indústria farmacêutica, conheceu o seu segundo marido, Michael, um judeu chassídico asquenazita, e sentiu-se instantaneamente em casa com a família dele.

No dia em que Milgrom casou novamente, a sua avó avisou-a sobre como é perigoso ser judeu – o que Milgrom achava que significava o perigo de a sua alma deixar o catolicismo. Foi só anos depois, após a sua avó morrer em 1993 e Milgrom receber um par de brincos com a Estrela de David, que ela percebeu o verdadeiro significado das palavras da sua avó, e de costumes que a avó lhe ensinara, como certificar-se de que não houvesse sangue nos ovos e varrer para o centro da sala. Tudo começou a fazer sentido.

(Durante a Inquisição Espanhola, soube mais tarde, os cripto-judeus tinham removido as mezuzot das suas portas, mas, num esforço para manter a área da entrada sagrada, não varriam naquela direção.)

Milgrom também encontrou receitas de família que remontam à Inquisição, como costeletas de porco falsas. “O que eles costumavam fazer era fazer essa costeleta de «porco» com rabanadas, e depois, quando estavam a comer, deitavam uma costeleta de porco verdadeira na lareira e o cheiro espalhava-se, de maneira que os empregados, os trabalhadores e os vizinhos pensavam que eles estavam a comer carne de porco”, explicou.

Milgrom decidiu investigar a sua linhagem estrategicamente, empregando a ajuda de Fernando Gonzalez del Campo Roman, um ex-padre espanhol que também é um especialista em genealogia. “Eu não sou o tipo de pessoa que vive num mundo de fantasia”, disse ela. “Estou muito fundamentada, estou muito enraizada e queria alguém que duvidasse do que está à procura. Este senhor é um ex-padre – ele não vai querer que eu seja judia, então vou contratá-lo para encontrar as minhas raízes judaicas”. Gonzalez del Campo Roman conseguiu traçar a linhagem familiar de Milgrom até 1545.

Os registos de batismo que ele obteve diziam Bajo necesidad ao lado dos nomes de todos os bebés da família de Milgrom. Isso significava que eles não foram batizados, supostamente porque estavam demasiado doentes para ir à igreja fazê-lo.

A mãe de Milgrom, que vinha de uma família cubana de elite que pertencia a círculos sociais onde não havia judeus, inicialmente tentou dissuadi-la de investigar muito profundamente, apontando que havia muitas freiras e padres na família – mas isso era comum em cripto-judeus que queriam esconder as crianças judias da perseguição. O último evento consciente da sua mãe antes de ser acometida pela doença de Alzheimer foi acender velas de Shabat e recitar a bracha com ela. Faleceu há várias semanas.

Em 2014, após mais de 10 anos de pesquisa, Milgrom viajou para um beit din em Jerusalém, onde contou ao dayan sobre a sua árvore genealógica e sobre como os seus avós nasceram em Fermoselle, uma pequena aldeia entre Espanha e Portugal, onde os seus antepassados viveram durante 523 anos. Ele sugeriu que ela descobrisse a história judaica de Fermoselle porque, até onde ele sabia, não havia registo de uma comunidade judaica lá.

Enquanto Milgrom viajava com o marido para Portugal, ocorreu-lhe que a sua família devia ter sido presa pela Inquisição portuguesa. Comparou nomes nos arquivos da Inquisição com a sua árvore genealógica, que confirmou que pelo menos 45 parentes do lado materno eram mártires que foram queimados até a morte por se recusarem a converter.se. “Eu estava a ler sobre essas avós, tias, e meninas de 15 anos com essa fé incrível”, recorda, “e disse a mim mesma: ‘Como poderia eu não ser uma mulher de fé, se os meus antepassados foram assim?’”

Assim que chegou a Fermoselle, Milgrom notou símbolos religiosos gravados em muitas paredes de pedra, incluindo casas que ela logo descobriu que tinham sido sinagogas. “Enviei [fotos dos símbolos] para Oxford, Harvard, Notre Dame.” Um arqueólogo disse-lhe que, se ela quisesse descobrir o segredo por trás dos símbolos, deveria olhar para eles quando o sol os atingisse, às 14h, pois essa era uma maneira comum de os cripto-judeus deixarem mensagens.

Um desses símbolos que ela conseguiu ver com mais clareza às 14h, conhecido como criptocruz, era uma cruz com uma âncora dentro de um círculo por baixo dela, sendo a âncora o mesmo símbolo encontrado em antigas moedas israelitas. Milgrom reconheceu este símbolo na entrada dos fundos de uma igreja onde uma mezuzá teria sido colocada.

“Não está escrito em lado nenhum, mas eu sei que eles tocavam na cruz”, explicou. “Fermoselle foi construída sobre uma montanha de rocha, granito… Todas as parede são ásperas ao toque. Quando você chega àquela porta dos fundos da igreja com aquela cruz com a âncora, é macia como manteiga. As pessoas tocaram-na durante gerações… As pessoas tratavam-na como uma mezuzá .”

Milgrom disse a um historiador em Fermoselle que o seu nome de família era Bollico (“pequeno bolo”), que tem origens judaicas. O historiador ofereceu-se para levá-la a uma sinagoga que já tinha sido transformada em residência particular. No dia seguinte, Milgrom viu-se descendo sete degraus que levavam ao porão da casa e, quando viu uma bica enorme que se projetava para fora, percebeu que estava no meio do que antes tinha sido uma micvê .

Mais tarde, um ex-presidente de câmara da vila levou-a para uma sinagoga diferente, onde ela viu os bancos e o lugar onde teria sido colocado o Aron Hakodesh . “Tudo o que estou a fazer é chorar pela história judaica perdida”, disse ela, “e naquele momento, foi quando se tornou minha missão que era isso que eu iria fazer – iria aos quatro cantos do mundo falar sobre isto.”

Enviou provas que descobriu de 22 gerações da sua linhagem para um rabino em Israel, que não aceitou testes de DNA e exigiu que todos os registos fossem documentados em papel. Demorou anos para que alguns dos documentos fossem traduzidos para o hebraico. Finalmente, recebeu uma resposta do rabino. “Recebi uma bela carta a dizer que nasci judia. A carta dizia que D’us me trouxe a este lugar de uma maneira muito indireta, mas que todos os meus ascendentes e descendentes eram judeus. Foi um dia incrível!”

Milgram começou a postar sobre sua ascendência redes sociais em 2010 e ganhou milhares de seguidores, muitas das quais perguntavam a Milgrom como ela descobriu o que descobriu e diziam que gostariam de procurar o seu passado possivelmente judaico também.  Começou a escrever um livro sobre histórias e receitas de cripto-judeus que viveram durante o tempo da Inquisição espanhola. O seu público aguardava ansiosamente o próximo capítulo, que ela postou nas redes sociais enquanto o escrevia, ao mesmo tempo que viajava por todo o mundo para revelar o seu passado.

Milgrom recebeu a Medalha das Quatro Sinagogas Sefarditas em Jerusalém pelas suas descobertas inovadoras sobre a história judaica de Fermoselle. Dois dos seus livros, My 15 Grandmothers e Pyre To Fire, ganharam o prémio International Latino Book Awards.

Hoje, Genie Milgrom faz parte do comité consultivo da Society for Crypto-Judaic Studies of Greater Miami e falou no Knesset, no Parlamento da UE e no AIPAC. Também é diretora para a América Latina do Kulanu.org, onde ensina judaísmo em espanhol e o seu marido ensina em francês.

Nos últimos 10 anos, Milgrom tem trabalhado como genealogista para ajudar as pessoas a encontrar as suas raízes judaicas. Falou num painel com o renomado demógrafo Dr. Sergio Della Pergola, que estimou que existem cerca de 50 milhões de outros descendentes de cripto-judeus de Espanha que ainda não conhecem o seu passado.

“Há uma quantidade impressionante de pessoas que podem mudar a face do povo judeu”, disse Milgrom.

Link para o artigo original em Inglês

Uma história de amor – A identidade de uma família de anussim em Portugal

Uma história de amor – A identidade de uma família de anussim em Portugal

Excerto do artigo original em hebraico do jornal israelita  Makor Rishon

Na zona oeste de Portugal, à sombra da Serra da Estrela, fica a vila portuguesa de Belmonte, o “belo monte”. Em 1492, a vila absorveu muitos dos exilados espanhóis, na sequência da ordem de expulsão decretada pelos reis de Espanha. Os exilados triplicaram o número de judeus em Portugal. 600 famílias judias receberam uma autorização de residência permanente em troca de um alto pagamento, e as outras receberam uma autorização para ficar temporariamente e foram consideradas “servas do rei”.

O casamento de D. Manuel com a filha dos reis de Espanha levou-os a exigir também a expulsão dos judeus de Portugal. D. Manuel recusou: os judeus que tinham permanecido no seu país eram ricos e educados, e tinham laços diplomáticos úteis no mundo das relações comerciais internacionais. Mas Isabel II pressionou o marido e, em 1496, D. Manuel declarou que aqueles que não se convertessem ao cristianismo deveriam deixar o país imediatamente em navios fornecidos pelo governo. Dezenas de milhares de judeus se reuniram numa praça de Lisboa antes da viagem, mas os navios não apareceram. Em vez disso, o chefe da Igreja Central de Lisboa e os seus representantes realizaram no local uma cerimónia de batismo forçado, e foi emitida uma nova ordem, proibindo os judeus de deixarem Portugal.

A conversão massiva forçada dos judeus portugueses ao cristianismo, ao contrário do chamado processo de cristianização voluntária pelo qual os judeus de Espanha passaram, resultou em que a maioria dos judeus portugueses não abraçassem sinceramente o cristianismo, tendo, pelo contrário, organizado sociedades secretas fechadas, dentro das quais mantinham secretamente o seu judaísmo, como anussim. A assimilação dos judeus portugueses na sociedade não foi bem recebida pela população local. A suspeita religiosa e a inveja do sucesso económico e do alto status de muitos judeus no governo e em profissões de prestígio alimentaram o ódio popular. A Igreja Católica pregava contra os “conversos” – os cristãos novos, culpando-os de todos os problemas de Portugal. E quando em 1506 uma praga atingiu Lisboa e o rei fugiu da cidade, a multidão, incitada, massacrou-os. Após o massacre, D. Manuel revogou a proibição de deixar Portugal, mas a maioria dos convertidos já tinham optado por permanecerem cristãos no reino. Houve uma minoria que manteve o seu judaísmo em segredo, apesar do temor da Inquisição que passou a operar em Portugal a partir de 1536 e perseguiu até à morte os convertidos que regressavam ao judaísmo.

Este é o pano de fundo da história da comunidade anussim em Belmonte, descrita no livro de Hannah Toug. No centro do livro estão as mulheres: a avó Gabriela-Sarah, a filha Miriam-Maria e a neta Isabel. Através dos seus olhos, experimentamos o modo especial de vida e pensamento dos anussim de Belmonte, ainda hoje no final do século XX, depois de  a comunidade ter sido descoberta e de ter retornado ao judaísmo, e de ter sido lá estabelecida uma sinagoga com um rabino sefardita-ortodoxo.

link para o artigo original completo em hebraico aqui