Parashat Vaishlach

Autora: Edith Blaustein

Elie Wiesel, no seu livro Mensageiros de De’s diz-nos: No seu sonho, Jacob viu uma escada cujo fim chegava ao céu. Ainda existe. Há quem a tenha visto, em algum lugar da Polónia, ao lado de uma estação de comboio abandonada, e um povo inteiro estava a subir em direção às nuvens ardentes. Esse era o caráter do medo que o nosso Jacob deve ter sentido.

Wiesel continua a descrever o nosso patriarca:

Um homem solitário, um sonho incandescente, um conflito. Dois irmãos, dois destinos. Amarrados e separados à noite. Um homem face à morte, um homem que imagina o seu futuro.

Um exame de si mesmo que implica um questionamento do seu passado. Memórias da primeira infância, das primeiras brigas com o seu irmão mais velho, triunfos seguidos de remorsos, os primeiros amores, a primeira e última deceção. Todos esses acontecimentos tinham-no conduzido ao confronto que acabava de ter com o seu tio Labão e o que teria amanhã com o seu irmão Esaú.

Jacob estava preocupado, o que era compreensível. Amanhã poderia morrer. O seu irmão, que ele não via há vinte anos, não compareceria sozinho ao encontro: Estaria acompanhado, pelo menos, por quatrocentos homens armados. O que aconteceria amanhã? Jacob estava com medo.

Na verdade, se ele tivesse o menor domínio sobre questões práticas, Jacob teria tentado descansar. Amanhã ele iria precisar de toda a sua energia, de todas as suas faculdades. Não conseguia, porque esta noite marcaria o início de uma nova aventura, a mais importante de todas.

Uma aventura estranha, misteriosa do princípio ao fim, de uma beleza avassaladora, intensa a ponto de nos fazer duvidar do que os nossos sentidos experimentam. Filósofos e poetas, rabinos e narradores, todos aspiraram lançar luz sobre o enigmático evento que ocorreu naquela noite, a poucos passos do rio Chabok. Um episódio contado na Bíblia com a sua sobriedade habitual e majestosa. Lembram-se?

Deixaram Jacob sozinho. E um homem lutou com ele até ao amanhecer. Quando viu que não o derrotara, deslocou-lhe a anca. E disse-lhe:

O dia está a chegar, deixa-me ir.

Jacob respondeu:

Não te deixarei ir, a menos que me abençoes.

E ele disse:

Qual é o teu nome?

Jacob respondeu:

Jacob.

O outro disse:

O teu nome não será mais Jacob, mas Israel, porque lutaste com De’s e o derrotaste.

Então Jacob pediu:

Peço-te que me digas o teu nome.

E ele respondeu:

Para quê o queres saber? E abençoou-o.

Jacob chamou aquele lugar Peniel:

Pois vi De’s face a face, e no entanto, continuo com vida.

Existem diferentes interpretações. Aqui as dimensões do episódio são modificadas: Testemunhamos um confronto entre Jacob e Jacob. O heroico sonhador e o inveterado fugitivo, o homem modesto e o fundador de uma nação, lutaram em Peniel numa batalha feroz e decisiva. E ganhou. Podia ser um anjo, o seu outro «eu» ou um homem, mas uma coisa é certa: O adversário foi derrotado. Agora Jacob estava preparado para enfrentar o seu irmão inimigo. Esse é, então, o significado principal deste episódio: A história de Israel ensina-nos que a verdadeira vitória do homem é aquela que ele consegue sobre si próprio.

Peniel: Encruzilhada, momento dramático para o espírito de Jacob. Já não estava satisfeito com a sua condição de filho de Isaac e neto de Abraão; desejava ter um nome que lhe pertencesse. Carregar com um significado completamente próprio e ligar-se a um evento que o imortalizasse.

Israel já não é decididamente o Jacob desorientado e sentimental que conhecemos até agora. Aprendeu a ser duro e determinado. A derrotar os seus adversários e inspirar respeito aos anjos. Sim, sem dúvida: Podia contemplar Peniel e lembrá-la com orgulho.

Parashat Vaietze

Elogios  a Lea

Autora: Edith Blaustein

Extraído do texto de Shulamit Hareven na Antologia Korot meBereshit, de Ruth Ravitzky.

Nos primeiros dias de Jacob, enquanto ainda tem a sua primeira identidade e não é Israel, há nele uma espécie de negação da discórdia. Uma negação da vida. Característica, diria um psicólogo moderno, do filho mimado da sua mãe, do filho preferido, cujo relacionamento com a sua mãe não é nem mais nem menos do que a vara com a qual ele mede o mundo.

Sem mais reflexão, o jovem Jacob assume o roubo, sem vacilar, sai ao caminho e chega à mesa do seu sogro (também irmão de sua mãe) quando trabalha para ele (estamos perante o primeiro retrato do que é uma relação entre sogro e genro).

Isaac também trouxe sua esposa através de um enviado (e não bebeu nem um copo de água na casa do seu sogro). Jacob não possui a independência masculina claramente estabelecida que caracteriza os líderes do povo. Também não é o criador de uma vida patriarcal, seu pai e avô não lhe serviram de exemplo. Ele é, pode dizer-se, um filho sem pai, «o filho da mamã», um homem cheio de imaginação, cuja força não se encontra no conflito direto. Ele é um homem encoberto.

A não aceitação das suas duas mulheres, Raquel e Lea, faz parte da negação do conflito em Jacob, uma parte do mundo imaginário em que ele se encontra.

Jacob diminui cada uma das irmãs: em Raquel recusa-se a ver a sua essência maternal; só vê a bela mulher por quem se apaixonou, e, em Lea, pelo contrário, só vê o aspeto maternal e não a sua dimensão de esposa / mulher.

O amor de Jacob por Raquel é o amor do sentimento (tão característico da adolescência).

Pelo contrário, Raquel não quer ser essa mulher que Jacob ama; ela não quer ser a mulher-mito, a mulher-menina: ela percebe muito claramente a pobreza humana essencial de uma situação fechada e coberta como esta, que não tem saída, e quer, expressamente, ser como sua irmã Lea.

Do ponto de vista simbólico, quando ela chega a Jacob com a exigência «Dá-me filhos, senão morro», ela está exigindo que ele pare de fazer dela a mulher extraída de sua imaginação errante, e que veja suas verdadeiras necessidades. Mas então «Jacob ficou muito zangado»: Zangou-se pelo próprio facto da exigência. Ele não lhe sugere que reze para ter um filho. Não lhe dá esperança alguma. Ele diz: Foi De’s quem te impediu de dar à luz. Noutras palavras, continua teimosamente a ver a esterilidade de Raquel como um princípio de De’s, como uma força especial, como uma parte da magia que é impossível mudar.

Em geral, Jacob não está inclinado a alterar situações, não discute com De’s, como fez Abraão no caso de Sodoma, ou como fez Isaac para pedir a De’s que abra o ventre de Rebeca. Jacob pensa que não tem o poder de mudar nada. Não tem forças para acreditar na possibilidade de uma mudança. Prefere permanecer na sua perceção de que existem forças mágicas que não estão sob seu domínio e que, portanto, não é obrigado a mudá-las.

Lea, cujos «olhos são meigos», numa leitura detalhada, não é aquela personagem fraca que só sabe ter filhos, que nós vemos assim, talvez por influência de Jacob, e que se projeta em nós até hoje.

A força vital de Lea é muito mais forte que a de Rachel, não só na sua fertilidade, que é consequência e não qualidade, mas na sua humanidade. Em nenhum texto é dito ou sugerido se Raquel tem forças para amar o seu marido. Raquel até vende a sua noite com o marido por umas mandrágoras. Lea ama-o e luta por ele. Aos olhos de Raquel, os filhos são o objetivo; aos olhos de Lea, os filhos são o meio para obter o amor de Jacob.

A personalidade realmente emotiva, possuidora da verdadeira força romântica, e não a aparente, de amor e de luta desesperada, é a de Lea e não a de Raquel.

Aos olhos de Lea, Jacob é marido só dela e ela não reconhece a ninguém o direito o partilhar (Ainda é pouco teres levado o meu marido?.. (Gen., 30:15) – como se ele também não fosse marido de Raquel). Este é a sua forma de amar.

Mas Jacob não via as coisas como eram; nunca percebeu que o mito que ele tanto desejava esteve sempre ao seu lado, na sua cama.

Lea é a «aborrecida», literalmente. Jacob persegue uma mentira, vai atrás de um engano de brilho luar distante, que nunca pode ser alcançado, já que que não vem de De’s, mas da magia. O próprio facto de as  mulheres de Jacob serem trocadas tem um certo esplendor. Ele passa uma noite inteira de amor com Lea-Raquel, sem perceber a diferença, e quando lhe mostram à luz do dia que a Raquel do seu coração é na verdade Lea, ele não percebe. Não entende o que lhe é pedido que entenda, não se curou do feitiço. A negação completa de qualquer conflito em que Jacob esteja envolvido obriga-o a continuar e a separar o «princípio Lea» do «princípio Raquel». Essa dicotomia enganosa, como se fossem princípios opostos, onde uma é a amada e a outra odiada, mantém Jacob preso. Na sua cama é criada a maldição da divisão, que será mantida posteriormente ao longo das gerações.

A força divina intervém aqui com dedicação. Como se quisesse ensinar a Jacob figurativamente que gastou todo o vigor da sua vida numa questão secundária: Raquel está enterrada na beira da estrada, enquanto Lea está enterrada no túmulo de Machpelá.

Parece que Jacob tivesse afastado Rachel para fora dos limites permitido e do possível, e assim introduziu nos seus filhos o princípio da diáspora. José, filho de Raquel, é retirado do círculo da vida na terra de Israel. A tribo de Efraim e a meia tribo de Menashé levam muito tempo para entrar em Israel. Eles não querem agir com energia, só quando são forçados a tomar o destino nas suas mãos, é que quebram o feitiço que pesava sobre Rachel e estabelecem-se permanentemente. O monte de Efraim nunca deixou de ser um lugar onde se praticava o paganismo. A diáspora está relacionada com os filhos de Rachel. E não apenas a dispersão, mas também esterilidade.

As duas mulheres estéreis mais importantes descritas mais adiante no Tanach são Chana, mãe de Samuel, e Michal, a filha de Saul. Ambas descendentes de Raquel, porque Chana pertence à tribo de Efraim e Michal à de Benjamim.

O fundamento da beleza e esterilidade da casa de Saul é um princípio totalmente pertencente a Raquel; embora Michal, filha de Saul, seja a única mulher no Tanach sobre a qual se diz (duas vezes) que amou um homem. À primeira vista, amou-o e exigiu ser dele. Apesar dessa tremenda independência, a maldição que pesava sobre Raquel permaneceu nela.

Como nos foi sugerido através das gerações, Raquel representa a esterilidade da diáspora. Mas os filhos de Raquel receberam uma compensação muito grande: beleza e graça pessoal, além da compensação monetária; não deveriam ser punidos porque não pecaram em nada.

Mas o ciclo da vida estabelece que o grande evento histórico, a revelação divina e não a mágica, tenha permanecido ao longo das gerações entre os filhos de Lea.

É comum no Tanach que um homem com uma responsabilidade histórica tenha algo mudado em seu nome. Então Abrão é Abraão, Sarai é Sara, Oshea é Yeoshua. Jacob é o único que, com sua entrada na corrente histórica, não recebe nenhuma mudança em nenhuma letra de seu nome, mas recebe uma mudança completa de identidade. Mais uma vez, a intervenção divina aparece, desta vez projetada em forma simbólica, quando o seu nome é mudado de Jacob para Israel após a sua luta com De’s.

Quando seu nome é mudado pela primeira vez, após a luta solitária na margem do rio, parece que o facto ainda não se enraizou: Jacob não muda. Coxeando e teimoso, continua à sua maneira. É necessária mais uma intervenção divina, e isso ocorre em Bet-El. Então Jacob é declarado Israel. Desta vez, da boca do próprio Santo, Bendito Seja.

Não há mais escapatória; deve enfrentar seu destino histórico, tornar-se um povo.

Mas, o que acontece imediatamente depois de Bet-El? A uma curta distância de ali, Raquel morre, ou como Jacob mais tarde dirá: «Raquel morreu-me». Literalmente: Raquel, a imaginária, aquela que nunca existiu, a Raquel da sua fantasia, «morreu para ele» no seu interior, ao lado da verdadeira Raquel (e, sem dúvida, infeliz), para que ele pudesse começar sua missão como Israel. E então a primeira coisa que ele faz é ir ver Isaac, seu pai. Retorna à fundação patriarcal. Ele não tem mais medo de Esav. Ele é Israel, que pode enfrentar os conflitos em sua vida. Isaac morre e ele é seu herdeiro.

Nem ouvimos dizer que Jacob-Israel chora Raquel com um lamento especial. Ele, artífice da palavra, não diz nada. Apressa-se a enterrá-la, coloca uma lápide, «e Israel viaja.» Não há descanso; o amor mágico foi enterrado numa sepultura apressada. O local onde uma pessoa é enterrada é muito importante para Jacob, ele é muito cuidadoso.

Este é o fim amargo de uma fantasia, que é enterrada rapidamente e sem lamentação ou choro.

Mas nenhum homem muda a sua maneira de ser de um dia para o outro, muito menos um homem como Jacob. Em pouco tempo volta a desviar-se com o episódio de José e, de certa maneira, também com  Benjamim.

Mais uma vez ele divide, novamente prefere o sentido mágico pessoal em detrimento da realidade que lhe é destinada, que entretanto se revestiu de uma maneira muito tangível: um grupo de filhos que estão zangados.

Ele renova o feitiço nos filhos de Rachel. E não lhes faz nenhum bem com isso. Joseph é punido pelos sonhos, pelos de seu pai e pelos dele. A punição é a diáspora. Jacob também, no final de sua vida, não pôde manter sua casa na Terra de Israel.

Ele não é um dos escavadores de poços, como seu pai e avô. Eles cavaram poços, ele colocou lápides. E terminou sua vida na diáspora, abrigado sob o poder de seu filho, que, por sua vez, estava sob as ordens de um governante estrangeiro. Realmente não é uma situação muito respeitável para o pai de um grande povo. No momento em que se desenvolve, com o apoio de Jacob, o fundamento de Raquel, todos descendem à diáspora.

Pode-se dizer que José é, em essência, o primeiro judeu diaspórico.

Viu-se inclusive obrigado a apoiar seus irmãos israelenses em momentos de necessidade. Nada de novo sob o sol.

Até à escravidão e a partida do Egito, o povo está sob a proteção temporária de um filho de Raquel. A redenção só pode vir das mãos de um filho de Lea: Moisés, da tribo de Levi. É ele quem reintegra o fundamento patriarcal e o princípio da terra. Ambos os princípios são sempre encontrados juntos na Bíblia: A terra de Canaã é a terra dos patriarcas, o local do monoteísmo.

José não saiu diminuído: as qualidades de Raquel, a inteligência, a rapidez, a graça que conquista o coração dos estranhos, tudo isso, juntamente com a recompensa material, são sinais da diáspora.

A possibilidade de se sair bem, de subir os degraus do poder estrangeiro, o carisma, têm sido  características de Raquel, a ladra do Trafim. (Em Gén., 31:19 Raquel rouba a seu pai estes elementos idolátricos que também são usados por Labão para adivinhação e feitiçaria).

Depois vem o trabalho forçado e a escravidão. De alguma forma, a diáspora vem de Raquel, uma consequência do erro do princípio da Raquel de Jacob, do engano. E não é em vão que Raquel é a mãe que chora por seus filhos exilados. Os filhos de Lea não foram para a diáspora? Sim. Mas aqui trata-se do sentido da diáspora: O distanciamento, a esterilidade, o temporal, são o eco do princípio de Raquel, consequência da mentira e da separação que aqui se encontram. A consequência é ficar de fora do grande «projeto» de De’s.

É muito estranho o modo como Jacob procurou com todas as suas forças, até seus últimos dias, perseverar na dicotomia sobre suas duas mulheres. De’s não lhe respondeu.

«As bênçãos de seu pai são mais importantes que as bênçãos de meu pai», diz Jacob a Joseph, e dá a ele e a seus filhos bênçãos de diferentes tipos. Mas antes de abençoar seus filhos, ele pede que seus netos, os filhos de Joseph, se coloquem de pé ao lado dos filhos de Lea, e não é atendido.

O divino não responde à magia privada. David constrói o reino e Moisés é o maior dos profetas, todos eles vêm dos filhos de Lea, Judá e Levi. O Monte do Templo e a capital não se encontrarão na herança dos filhos de Raquel. O Divino passou por cima do mágico e o deixou-o à beira do caminho.

O espírito, a poesia, a moral, o reinado, foram revelados aos filhos de Lea. E é claro que, no final, o próprio Jacob pede para ser enterrado ao seu lado, como se, em sua morte, ele mudasse e aceitasse a sentença divina. Permanece com seus antepassados, em sua terra e com sua verdadeira esposa.

A atração de Raquel é forte, vemo-lo em muitos escritores, que foram seduzidos por sua aparência. A imaginação continuou e a relevância poética foi atribuída a Raquel, e a qualidade «prosaica» a Lea. No entanto, essa diferenciação não tem fundamento. Não é atribuível a um fundamento poético, a diferença não passa de um engano. Há muita prosa turva e falta de imaginação, sem um remanescente de bondade, na essência de Raquel, a ladra dos Trafim. Até o ciúme e as disputas e o episódio das mandrágoras.

O nascimento e a morte da matriarca da estrada, quando a caravana quase não para. Por outro lado, há muita poesia na essência de Lea e na sua luta desesperada pela alma do homem que ama. Ela não tem esperança, porque Jacob nunca será um homem completo em sua alma, um homem com a bondade de De’s. Jacob diz ao Faraó que os anos de sua vida foram duros e amargos, e isso, é claro, é a verdade suprema. Um psicólogo moderno veria em suas contradições repetidas e não resolvidas a impossibilidade de se libertar da magia. Um relacionamento edipiano não resolvido, em sua impossibilidade de tolerar um conflito real, «conflito genital» em termos psicológicos, em sua falta de fé básica na possibilidade de mudança e em seu desejo de se sentir protegido até o fim de seus dias. Mas desta vez não estamos interessados em psicologia. Lea nunca conseguiu libertar Jacob do mundo assombrado em que ele estava preso, mesmo quando a força da moral e a energia da vida estavam do seu lado.

Muitos escritores continuaram no caminho do pecado de Jacob. Por exemplo, Tomas Mann em José e seus irmãos, sua preferência pelos belos e inteligentes deixa muitas suspeitas, enquanto os filhos de Lea recebem uma descrição quase caricatural. Ele insiste em ver a vitalidade nervosa especial dos filhos de Raquel como uma qualidade espiritual, e a dos filhos de Lea como um atributo materialista. Mann esquece que a graça que desperta a atenção e a estética não têm nada do divino no sentido mais elevado do termo, mas muito pelo contrário, é um tipo de compensação dada pela falta do divino.

A origem das qualidades espirituais, da essência divina, do princípio de Raquel, tem em vários autores um significado de olhar diaspórico. Uma linha direta leva-nos daqui a vários autores judeus norte-americanos dos nossos dias. Um olhar que prefere um princípio de beleza à força, imaginação à vitalidade, proteção estrangeira ao orgulho, astúcia ao simples. Pecam porque se separam entre duas possibilidades. Este é precisamente o pecado de Jacob, a dicotomia. Então, no seu tempo, Jacob transformou Raquel num mito, e Lea num monstro. Mann, entre outros, teima em ver os filhos de Lea como homens grandes que serviam apenas para a luta, um pouco tolos até. Isso é mais que um pecado literário, é uma cómoda filosofia de vida, sentimental, decadente, que não entra realmente em conflito com o princípio de Lea, pois é ela, e não outra, a fundadora da estirpe espiritual e física.

Parece que, precisamente, sua vida cinzenta, onde tudo é dado sem graça, sem coisas que se destacam, é o que reflete a verdade. E acaba sendo mais espiritual do que a graça vã e inteligente dos filhos de Raquel, fruto da imaginação de Jacob. Talvez tenha chegado a hora, do ponto de vista literário e metafísico, de rever mais de perto a essência de Lea e seus fundamentos.

Não a odiada pelo sonhador, mas, precisamente por causa dessa diferenciação, a amada pela força divina, destinada a ser a matriarca de uma grande religião e do grande povo. É a existência judaica em sua essência e sua surpreendente pluralidade, na qual a divisão de Raquel é incorporada às suas margens, porque tudo está incluído em Lea.

A antologia Korot meBereshit, mulheres israelenses escrevem sobre o livro Bereshit, compilado por Ruth Ravitzky, foi publicada por Iediot Ajronot, Tel Aviv, 1999.

Tradução livre de Edith Blaustein

Parashat Vaierá

As mulheres como vítimas numa sociedade perversa

Autora: Edith Blaustein

Extraído do texto de Loji Brandes na antologia Korot meBereshit, de Ruth Ravitzky.

No episódio de Sodoma estão presentes todos os elementos necessários para um filme de ação de sucesso, daqueles feitos em Hollywood. Uma multidão maligna e sedenta de sangue, suspense, perigo, «super-homens» fortes e empreendedores que afinal são anjos, um final feliz e, é claro, um protagonista heroico que, no último momento, consegue escapar da explosão para se salvar, deixando os maus para trás, a uma distância considerável. Música. Fim.

A história desta parashá começa com uns homens que ameaçam levar os convidados de Lot. O perigo é iminente, o suspense aumenta, mas nós, leitores, não duvidamos; sorrimos com tranquilidade e segurança, sabendo que os convidados são anjos disfarçados e que, dentro de alguns momentos, De’s cumprirá o Seu decreto e exterminará os maus.

Na Torá, Lot é apresentado sob a influência moral de Abraão. Tal como o seu famoso tio, ele também realiza «Achnasat Orchim» (hospitalidade atenciosa para com os convidados). A descrição das boas-vindas que Lot dá aos anjos é muito semelhante à dada por Abraão. Sobre Abraão, é dito: E levantou os olhos … (Génesis, 18:1 em diante). E sobre Lot está escrito: E Lot viu-os, levantou-se para os receber e inclinou o rosto por terra … (Génesis 19: 1-3).

Abraão serve bolos e carne. Lot contenta-se em dar-lhes bebidas e matzot. No entanto, existem muitas semelhanças: um recebimento cálido e comida e água para se refrescarem. Eles chegam a casa de Lot ao entardecer, por isso aí passam a noite.

O autor da história cria uma forte relação entre Lot e Abraão, usando as mesmas palavras para aumentar a semelhança entre eles e justificar que Lot seja salvo, por ser inocente numa cidade malvada.

Nós, leitores, estamos destinados a ter sentimentos de afeto e carinho por Lot e a aplaudir no final da história. Mas há um elemento na história que mostra Lot com menos luz pastoral: O oferecimento que ele faz das suas filhas à multidão selvagem que está à espera em frente à sua casa. As suas filhas em troca de não acontecer nada aos convidados (Gén., 19-8).

Porque não se oferece a ele próprio? Qual é a natureza moral de um homem que prefere a paz dos seus convidados, estranhos, aos corpos, à honra e à vida das suas filhas?

Além disso, ficamos curiosos para saber que sentimento pretendia provocar em nós o autor bíblico em relação a Lot.

Felizmente, a Bíblia está longe de ser Hollywood. O final feliz não o é tanto, e aparecem outros elementos que nos levam a uma profunda reflexão. A história culmina com a vida familiar de Lot, as filhas, a mulher transformada em estátua de sal, como castigo exemplar, porque quis observar, com prazer, a morte de uma grande quantidade de seres humanos. Transformada numa estátua de sal, será observada por centenas de pessoas ao longo das gerações, talvez com prazer.

Não sabemos como se recuperaram as filhas de Lot do terrível trauma que o pai lhes provocou ao oferecê-las, mas sabemos que as jovens estupram o pai. Na primeira noite, a sua filha mais velha teve relações com ele e, na segunda noite, foi a vez da sua filha mais nova. A razão dada pelo próprio texto leva-nos a questionarmo-nos se devemos considerá-las heroínas que desejam salvar a humanidade. (Nota: isto de acordo com a interpretação segundo a qual elas pensavam que era o fim do mundo e que não havia mais homens). No entanto, o motivo é falso. Sujaram-se em vão, a elas mesmas e ao pai.

A complexidade é semelhante ao comportamento de Lot para com as suas filhas. Nos dois casos, cometeram atos em desacordo com a moral, mas não por razões instintivas, e sim por um elevado raciocínio moral. A ação das filhas poderia muito bem ser um castigo pelas intenções passadas de Lot para com elas, o que é percetível devido à semelhança das palavras usadas nos dois casos. Quando Lot sugere entregar as suas filhas diz: Aqui estão as minhas duas filhas, que não conheceram homem (Gén. 19-7), e quando as filhas planejam o estupro: … e não há homem na terra para se chegar a nós (Gén., 19-31). Depois do estupro, elas dizem sobre Lot: … e ele não soube do seu deitar nem do seu levantar (Génesis, 19:33 e 35).

A punição a Lot é exposta da maneira mais amada pelos autores bíblicos: «midá kenegued midá», justiça retributiva: Lot tentou levar as suas filhas para serem estupradas, e as suas filhas o estupraram. Lot planejava empurrar as suas filhas desde dentro da sua casa fechada para o exterior, e as suas filhas cometeram o estupro no lugar mais fechado que se possa imaginar: uma caverna. Lot tentou aliciar a multidão a aceitar o sacrifício descrevendo as suas filhas como virgens que não conheceram homem, e as suas filhas usaram esse mesmo conceito para justificar o estupro. Lot não pôde realizar o que estava disposto a fazer com as suas filhas, mas elas sim fizeram-no, noite após noite.

Despedimo-nos do herói de Sodoma, embriagado numa caverna, incapaz de diferenciar a direita da esquerda, sofrendo a humilhação de ter sido usado sexualmente pelas suas filhas.

Assim, o autor dá-nos a sua opinião sobre a proposta de Lot aos sodomitas.

Dentro de uma sociedade perversa, não há boas escolhas. Não dá para escolher entre bom e mau, mas apenas entre mau e pior ainda.

Não é por acaso que os nossos sábios escolheram, para demonstrar a maldade de Sodoma, exemplificá-la através da cama de Sodoma. Todos os visitantes que viessem a Sodoma tinham que se deitar naquela cama; se o comprimento da pessoa fosse maior do que o comprimento da cama, sofria a mutilação das pernas, e se fosse menor, os seus membros seriam esticados. Este exemplo não é apenas uma história; fala-nos sobre o caráter de uma sociedade perversa, onde todos devem ter as mesmas qualidades, sem haver lugar para as diferenças. É proibido ter nuances, a equivalência domina tudo.

Aos olhos dos homens maus, não há nada pior do que ser forasteiro. A crueldade sádica dos membros desta sociedade é dirigida aos estrangeiros, aos diferentes, àqueles que não são «como nós».

Sodoma é uma sociedade maligna, onde todos são considerados como um só homem para defender tudo o que é considerado «nosso», onde o outro, o diferente, é odiado por isso mesmo. O indivíduo é anulado dentro da maioria, no consenso. Não há nem uma criança que grite: «O rei vai nu!», e, se houvesse, levantar-se-iam contra ele imediatamente dizendo-lhe: – Cala a boca, traidor, o rei é dos nossos, não espetes um punhal pelas costas a esta nação!..

Mas o mais triste que surge das histórias de Sodoma é a falta de esperança que esta sociedade tem. Este turbilhão de maldade que se estende sem deixar ninguém de fora não pode ser detido. Não se consegue apagar o fogo do mal. O Molech da unidade queima e extermina até o fim. E toda a terra é engolida pelas nuvens de fumaça e enxofre e afoga-se em rios de sangue, terror e lágrimas.

A antologia Korot meBereshit, mulheres israelenses escrevem sobre o livro Bereshit, compilado por Ruth Ravitzky, foi publicada por Iediot Ajronot, Tel Aviv, 1999.

Tradução livre de Edith Blaustein.

Parashat Bereshit

Ki tov – Viu que era bom – Retirado do livro Ideas de Bereshit, dos rabinos Isaac Sakkal e Natan Menashe

O primeiro que notamos é que o Bem é algo básico; é por isso que aparece desde o começo da Torá.

Rambam, no Guia dos Perplexos, terceira parte, capítulo 10, defende que tov quer dizer que existe, que é estável. O existir é algo bom. O contrário é o Mal, aquilo que destrói. Portanto, toda a existência material depende de De’s, e é Ele que faz com que tudo seja, portanto, é algo bom. Isto implica que nós, a quem foi ordenado andar nos Seus caminhos, também devemos fazer com que o mundo permaneça, que seja estável. Por outras palavras, devemos fazer o Bem.

No que diz respeito ao segundo dia, onde não diz: «E Viu De’s que era bom», isto é assim porque ainda não se tinha visto o benefício claro desta divisão das águas. Só no terceiro dia, quando aparece a terra que vai ser o prelúdio da vida vegetal, é que se vê o benefício, e então diz: «E Viu De’s que era bom».

Rashi acrescenta que, para que algo seja bom, deve ser completo. Se estiver pela metade não é bom. É por isso que esta frase vai ser dita somente no terceiro dia, que é quando fica concluída a tarefa com as águas.

O midrash diz-nos que o verdadeiro Bem é o homem justo. Quer dizer, o mundo por si mesmo não é algo bom nem mau, mas sim apenas um meio ao dispor do ser humano: se for bem utilizado, então, será bom.

É por isso que, quando homem foi criado, não foi dito «E Viu que era bom – ki tov –», pois é o ser humano que tem o livre arbítrio para fazer o Bem ou o Mal, portanto, ainda não se pode dizer se vai ser bom ou mau.

Esta é a causa pela qual é consagrado o dia de Shabat, que é quando acaba a criação física, e este é abençoado exatamente para nos demonstrar que o mundo material não é o principal e essencial mas sim só um meio, e que o mundo espiritual é o verdadeiro Bem, que é precisamente o que o Shabat nos traz.

No que diz respeito ao Mal, uma primeira resposta é que o Mal, ao princípio, não existia; ele aparece depois de o Homem comer da árvore da qual lhe tinha sido proibido comer; só quando Adão desobedece é que aparece o Mal. Se não tivesse desobedecido, não teria havido Mal. Tudo teria sido Bem. É o Homem quem faz o Mal.

Os sábios no midrash são mais ousados e defendem que quando diz tov meod – «muito bom» –, refere-se à morte. Assim diz Rabi Meir, pois a morte dá repouso aos justos e serve de advertência aos malvados. Que quer dizer «dá repouso aos justos»? Quer dizer que, durante toda a vida, o justo luta sem parar contra o mau impulso, contra as tentações e os desejos. Quando chega a morte, pode finalmente descansar de todo esse assédio e ameaça constante e pode desfrutar eternamente da presença divina. No que diz respeito aos malvados, é como uma advertência para não fazerem o mal, pois chegará o dia da sua morte e vão ter que prestar contas de tudo o que fizeram.

Rambam diz que todas as coisas naturais que nos parecem más, na realidade são acontecimentos naturais que são bons para a manutenção do mundo. A morte é uma consequência da matéria, pois somos feitos de matéria e a matéria destrói-se, e isso mantém o ciclo da vida. A morte dá lugar à nova geração. Assim se mantém o sistema, as gerações sucedem-se, e assim o mundo funciona.

Mesmo as limitações, sejam económicas ou outras, também são positivas, pois ajudam-nos a mantermo-nos no objetivo e a não nos desviarmos. Quando uma pessoa possui demasiado, o mais provável é que se desvie da meta para ir em busca do seu próprio prazer, pois dispõe dos meios para se poder permitir ter tempo livre para passear etc. Mergulha no mundo do prazer e esquece-se do verdadeiro objetivo.

Outro midrash diz: Tov refere-se ao mundo vindouro (recompensa) e tov meod refere-se ao Gueinom (castigo). O que isto significa é que é bom que exista a justiça, que o homem que se comporta corretamente merece ser recompensado e que aquele que não, levará um castigo. Quer dizer, a Torá não pensa como o cristianismo, que diz que não se deve castigar o culpado, mas sim que deve haver justiça e deve receber aquilo que justamente merecer.

Vejamos por exemplo, o sono. Poderíamos pensar que o sono é algo mau: faz-nos perder um terço do nosso dia, e, por conseguinte, um terço da nossa vida. No entanto, é bom, porque demonstra ao Homem que ele é limitado, que não pode tudo, que não tem um poder absoluto; não lhe é possível estar mais de dois dias sem dormir. Não pode ter tudo sob controlo o tempo todo.

O fantástico disto é que todas as coisas que consideraríamos más, os sábios consideram boas.

No que diz respeito ao mau instinto, como entra isto num mundo de Bem?

Diz Rabi Shimon que se não fosse pelo mau impulso, o Homem não construiria casas, não casaria, não procriaria, nem trabalharia. Quer dizer que o mau impulso pode ser usado para bem e pode retirar-se dele algo construtivo. Se não fosse pelas paixões físicas, então os animais e os seres humanos não se reproduziriam. Quer dizer: graças a isso é que o mundo se constrói e renova. Isto é sempre quando seja usado para o bem, senão seria muito destrutivo.

Por conseguinte, o mau instinto não é algo mau por si só. É o Homem que o pode utilizar para bem ou para mal. De’s não criou o mau instinto; De’s criou o instinto e o impulso, mas é o homem que o pode utilizar para fazer coisas corretas ou incorretas.

O Mal vem por causa da ausência de sabedoria, por causa da ignorância. Tal como o cego, que não pode ver e por isso tropeça e magoa-se, assim é aquela pessoa que não tem sabedoria. É como um cego que anda pela vida e tropeça e magoa-se ou magoa outros. É por isso que, nos dias messiânicos, quando toda a terra estiver cheia do conhecimento de De’s e de sabedoria, então as guerras já não existirão mais. A ausência do conhecimento – é o homem que não o quis adquirir – é que causa o Mal, não foi De’s quem criou o Mal. Tal como uma pessoa que compra um móvel para montar: O produto vem com instruções, mas a pessoa decide montá-lo sem as ler e o móvel fica mal montado. A culpa não é do fabricante, mas sim do cliente que não quis ler as instruções e agir de acordo com as mesmas.

De’s cria um mundo bom, estável e que se mantém. Tudo no seu conjunto é bom. Talvez se analisarmos um aspeto isolado do todo pode parecer-nos que é mau, mas quando o vemos a interagir no conjunto da Criação, vemos que é bom. Tal como uma peça preta de um quebra-cabeças com uma imagem de umas ilhas iluminadas pelo sol: Se olharmos para essa peça preta isoladamente, podemos pensar que é um erro, mas ao vê-la no seu lugar exato, vemos que se trata da sombra de uma palmeira, e ela então encaixa perfeitamente. O ser humano tem a capacidade e o dever de utilizar tudo isto para o Bem.

Parashat Vaielech

Mitzvat Hakehel – Reunir todo o povo de Israel – Retirado do livro Ideas de Devarim, dos rabinos Isaac Sakkal e Natan Menashe

Texto a analisar: Devarim 31:9-13

O primeiro que notamos é que quando diz esta Torá, não se refere a toda a Torá, pois a Torá ainda não estava acabada; faltavam acontecimentos que ainda não tinham sido escritos. É por isso que, mais à frente, 31:24-26 diz: E foi quando acabou de escrever as palavras desta Torá no livro, até que o completou (…) Tomai este livro da Torá e colocai-o o na arca do pacto do Eterno. Nesse versículo vê-se claramente que somente aí se completou a escrita da Torá. Portanto, o nosso versículo da parashá de Hakehel (E escreveu Moisés esta Torá), não se refere a toda a Torá.

O livro Devarim pode dividir-se da seguinte maneira: as três primeiras parashiot (Devarim, Vaetchanan e Ekev) tratam dos temas fundamentais do judaísmo, os que têm a ver com a fé em De’s e com as boas qualidades.

Depois, as próximas três (Ree, Shoftim e Ki Tetzé) são parashiot de mitzvot específicas.

A três seguintes (Ki Tavó, Netzavim e Vaielech) fazem finca-pé na importância de nos mantermos firmes e fiéis ao pacto.

As duas últimas (Haazinu e VeZot Habrachá) são as últimas palavras de Moisés, ditas em forma poética.

A expressão esta Torá já foi mencionada antes, na parashá Ki Tavó, e, tal como dissemos, essa parashá faz parte das parashiot que se referem a nos mantermos fiéis à Torá. Portanto, a nossa parashá não faz alusão aos cinco livros da Torá, mas sim àquelas partes da Torá que sublinham o facto de sermos fiéis ao Pacto.

E era precisamente isto que o rei tinha que ler. As partes do livro de Devarim que falam da importância de cumprir a Torá e manter o Pacto.

Por outras palavras: deve escrever todos os parágrafos que advertem sobre os benefícios e consequências do cumprimento dos preceitos (sem entrar nos detalhes dos preceitos), quer dizer, as bênçãos e as maldições e todos os parágrafos que nos incitam ao cumprimento de toda a Torá.

O motivo pelo qual é entregue aos cohanim e aos sábios, é porque os cohanim eram quem ensinava a Torá ao povo, e por isso era importante que tivessem estes parágrafos à mão para poder ensiná-los a toda a gente.

E é a isto que faz alusão quando diz que se devia ler a cada sete anos, pois a Torá deve sempre ser lida e estudada, e não só os cohanim e os sábios, mas sim todo o povo.

Portanto, vê-se claramente que a intenção deste preceito não é estudá-la e aprendê-la, mas sim renovar o Pacto entre o povo e De’s, lendo-a a cada sete anos.

O povo fez um Pacto com De’s no monte Sinai, e depois renovou-o aos quarenta anos em Arvot Moav. Se prestarmos atenção, veremos que nessas duas ocasiões são utilizadas as mesmas palavras mencionadas agora.

A cada sete anos, quando a ideia do Pacto consertado com De’s se vai esquecendo na consciência do povo, Moisés diz-lhes que é necessário renová-lo. É por isso que isto foi dito logo depois de Moisés ter reunido o povo inteiro para renovar o Pacto.

O que Moisés fez foi juntar todo o povo e renovar o Pacto, e agora diz-lhes que isso deve ser feito cada sete anos. É por isso que têm que vir todos: homens, mulheres e crianças, tal como aconteceu no monte Sinai.

É precisamente isto o que diz Rambam em Hilchot Chaguigá 3:1-3: É um preceito reunir todo Israel, homens, mulheres e crianças, ao finalizar o ano sabático, quando sobem ao santuário. Devem ler-se aos seus ouvidos parashiot que incentivem ao cumprimento dos preceitos e que os fortaleçam na religião verdadeira. Parashiot cujo objetivo é o cumprimento geral das mitzvot.

Quando se reunia e se lia tudo isso? No final do sétimo ano sabático, depois do primeiro dia da festa de Sucot, lia-se a Torá. E era o rei quem devia lê-la no pátio do Templo. O que é que o rei lia? Lia desde o princípio do livro de Devarim até à primeira parte do Shemá; depois saltava até à segunda parte do Shemá e depois saltava até às bênçãos e às maldições. (Acaba aqui a citação de Rambam em Hilchot Chaguigá).

O motivo pelo qual se lia exatamente estes parágrafos é porque neles vê-se claramente o incentivo para cumprir todos os preceitos.

Tal como quando um indivíduo quer juntar-se ao povo de Israel, o que se faz é explicar-lhe os princípios básicos do judaísmo, a existência de De’s, a Sua unicidade, que opera a justiça, etc. E sobre estes temas diz Rambam que nos devemos estender e abundar em detalhes, e depois ensinam-se de forma breve o resto dos preceitos. Com isto, é suficiente para entrar no Pacto.

É isto mesmo que se deve fazer a cada sete anos.

Porquê os sábios estipularam que era precisamente o rei quem devia ler esta Torá diante de todo o povo no fim dos sete anos? De onde aprenderam isto, se a Torá não disse nada ao respeito?

Se observarmos o parágrafo anterior ao nosso, ele fala-nos justamente de que Yehoshua seria quem faria entrar o povo de Israel na terra. E ele era precisamente o líder político do povo, aquele que exercia o cargo de rei.

É por isso que aprenderam que o rei é que devia ler tudo isto aos ouvidos do povo e renovar o Pacto com De’s. E porque o rei é o líder deles, é ele que tem a autoridade para comprometer e obrigar a todos a cumprir o Pacto, já que todo o povo o teme e obedece às suas palavras. Este é o motivo pelo qual deve ser lido pelo rei. Para além disso, desta maneira o Pacto ganha uma conotação muito mais solene e séria.

Porquê deve ser feito a cada sete anos? Porquê no ano sabático? Justamente depois do ano sabático, quando estão tranquilos, não estão atarefados com os trabalhos do campo e as dívidas foram perdoadas, então é quando têm a mente tranquila para poder pensar em tudo isto.

Mais um ponto a ter em conta é que precisamente agora as pessoas começavam novamente a se dedicar aos seus trabalhos. Por isso, antes de iniciarem os seus afazeres de rotina, a Torá ordena este ritual, para que o povo tenha o Pacto bem presente nas suas mentes. Tal como o fizeram no deserto com Moisés, onde reafirmaram o Pacto antes de entrar na terra, para não terem medo de tudo o que iam ter que enfrentar, assim também, a cada sete anos, repetem isto, para terem força e poderem enfrentar tudo aquilo com que se terão que deparar nos próximos anos de trabalho, e para a sua confiança e fé em De’s não se debilitarem.

Liam-se estes parágrafos no fim do ano sabático, antes de começar tudo novamente; desta maneira vão aprender que não devem temer nada, que o único caminho e a única fórmula para triunfar é fazer a vontade de De’s.

No momento em que vai começar a vida diária e a rotina, é quando é necessária uma dose extra de fé e temor a De’s para não tropeçar.

É por isso que se fazia em Sucot, pois nesta festa consciencializamo-nos de que tudo depende de De’s e não só de nós. Em Sucot recordamos que fomos atrás de De’s por caminhos inóspitos e Ele nos conduziu pelo deserto e fez com que nada nos faltasse.

Está escrito: Reunirás o povo, homens, mulheres, crianças e os estrangeiros que estejam nas tuas cidades, para que escutem e para que aprendam e temam o Eterno vosso De’s e cumpram todas as palavras desta Torá.

Porquê está escrito para que escutem e para que aprendam? Deveria ter dito para que escutem e aprendam.

O comentarista Or HaChaim diz que o motivo pelo qual se repete a palavra para duas vezes é porque se dirige tanto ao homem como à mulher. A maneira em que a mulher capta algo é geralmente diferente da maneira do homem: A mulher vivencia-o, recorda-o, e fá-lo. O homem, pelo contrário, é mais analítico: estuda-o, e aí é que se convence e se compromete.

O objetivo a que se deve chegar é temer a De’s, e isso vai levar-nos a cumprir todas as palavras desta Torá e cumprir os seus preceitos. É por isso que se repete duas vezes a palavra para, pois refere-se à internalização, seja da maneira feita pela mulher ou pelo homem. (Por experiência ou analiticamente).

Então, qual é o objetivo: Temer a De’s ou cumprir a Torá? Na realidade, os dois são o objetivo. Que o cumprimento dos preceitos seja com temor a De’s, com um profundo respeito reverencial. Que não seja um ato reflexo e automático, sem pensar no que faz ou onde isso o conduzirá.

O facto de ser o rei quem lhes lê tudo isto ajuda a gerar temor no povo.

O motivo pelo qual as crianças pequenas também devem estar presentes, apesar de ainda não entenderem, é para adquirirem temor a De’s. Não é para aprenderem os preceitos, pois, como dissemos, ainda não têm raciocínio; o objetivo é que, ao ver todo o povo e o rei a ler a palavra de De’s, eles adquiram uma tal experiência que fique gravada na sua memória e nunca seja esquecida.

Estas palavras voltam a repetir-se outra vez na Torá, e é precisamente no sopé do Monte Sinai. Ali diz: Cuida-te muito de não esqueceres o que viste com os teus olhos, e que não se afaste do teu coração todos os dias da tua vida. E ensinarás aos teus filhos e aos filhos dos teus filhos, o dia em que estiveste perante De’s no monte Chorev quando De’s disse: – Reúne-Me o povo e faz-lhe ouvir as Minhas palavras, que lhe ensinarão a temer-Me todos os dias que vivam sobre a terra e os seus filhos o aprenderão.

Não se trata só de recordar e renovar o Pacto. É algo que vai mais além; trata-se de reviver o Pacto. Não é algo meramente intelectual, mas também um acontecimento emocional; vivenciar o Pacto com De’s como se fôssemos nós que estamos de pé no monte Sinai aceitando os mandamentos de De’s.

Este é o motivo pelo qual não se fazia todos os anos em Sucot, pois seria algo muito rotineiro. Mas ao fazê-lo a cada sete anos, passa a ser algo mais especial. Como, por exemplo, quando se faz Bircat Hachamá (a bênção quando começa um novo ciclo solar), que ocorre uma vez a cada muitos anos. Apesar de ser somente uma bênção rabínica, é realizada do mesmo modo, com muita emoção e entusiasmo, porque é algo que ocorre a cada muitos anos.

Uma vez a cada sete anos a Torá fazia-nos reviver todo este evento para que, com alta emoção e no meio de todo o povo, o Pacto e o temor reverencial a De’s ficassem gravados no mais profundo do nosso ser.

É por isso que se fazia no santuário, pois o tabernáculo (como já explicámos) era como se fosse um monte Sinai portátil.

Rambam, em Hilchot Chaguigá 3:4 diz: Antes de o rei ler no sétimo ano, tocavam-se as trombetas em toda Jerusalém para reunir todo o povo e construia-se uma grande plataforma no santuário e o rei lia dali para que todos o escutassem e todo o povo se reunia ao redor dessa plataforma.

De aqui vemos que as trombetas fazem-nos recordar o som do Shofar no monte Sinai. As pessoas ao redor da plataforma recordam-nos todo o povo a rodear o monte Sinai para escutar a voz do Eterno.

Continua Rambam dizendo: Cada um deve ver-se a si mesmo como se estivesse a receber nesse momento a Torá e está a ouvi-la da boca de De’s.

O número sete é muito recorrente em todo este parágrafo, pois tem em total sete versículos, 140 palavras (20 × 7); sete vezes aparece o nome de De’s; deve ler-se no sétimo dia da festa de Sucot; essa festa cai no sétimo mês, e fazia-se a cada sete anos.

Tudo isto nos faz recordar quando saíram do Egito, e que ao fim de sete semanas (7 × 7) estiveram no sopé do Monte Sinai para fazer o Pacto com De’s.

O acontecimento do monte Sinai não foi chamado «Dia do Sinai» ou algo do género, mas sim precisamente: Yom HaKahal, e este preceito da nossa parashá chama-se precisamente a mitzvá Hakehel.

O dia em que todo o povo (Kahal) esteve frente a De’s, com temor reverencial, para se transformar no povo de De’s.