Menos conhecida que a de Alfred Dreyfus, a história de Barros Basto também é sobre o desejo de manter a fé judaica e os sacrifícios que se deve pagar por ela – outro triste exemplo do antissemitismo europeu do século XIX
Por: David Alejandro Rosenthal
O capitão Artur Carlos de Barros Basto é conhecido por ter sido injustamente caluniado e demitido do seu posto militar. Não muito diferente de Alfred Dreyfus, um oficial de artilharia francês de ascendência judaica cuja condenação em 1894 sob a acusação de traição se tornou um dos dramas políticos mais polarizadores da história francesa moderna.
Esses dois homens, importantes militares e heróis condecorados, tornaram-se alvo do antissemitismo europeu, que se acentuaria em meados do século XX, com o início da Segunda Guerra Mundial.
Barros Basto é uma figura desconhecida fora de Portugal, ao contrário de Dreyfus, mas a sua história é tão interessante como a dele, ou até mesmo mais. Barros Basto dedicou-se a escrever sobre temas judaicos e ainda mais importante foi o seu trabalho como líder comunitário. Além disso, ele foi uma grande contribuição para a luta dos Conversos – judeus sefarditas que tinham sido forçados a se converterem ao catolicismo. Aliás, o capitão Barros Basto foi um deles.
Em Portugal, ocorreu um fenómeno histórico muito especial, pois a concentração de sefarditas era tão alta que, até hoje, os portugueses são em grande parte descendentes daqueles “marranos” – judeus convertidos – que tiveram pouca escolha em 1497, quando foram obrigados a se converterem. Como em Espanha, os judeus enfrentaram um grande dilema: ir embora, com tudo o que isso implicava, ou adotar a nova fé.
Um bom número de judeus decidiu permanecer na sua terra natal, pelo que tiveram que ser batizados e mudar os seus nomes. Alguns tornaram-se os cristãos assíduos, misturando-se com a nobreza e com os “cristãos velhos”, e até se tornaram importantes membros do clero católico. No entanto, outros, apesar de se terem convertido, mantiveram a sua identidade judaica ao mesmo tempo em que criavam uma nova, o que lhes permitiu passar despercebidos entre seus novos correligionários – fossem eles cristãos novos ou velhos.
A família de Barros Basto manteve as suas raízes hebraicas ao longo dos séculos e tinha clareza sobre isso. Assim, o seu avô, antes de morrer, revelou-lhe a verdade sobre a sua origem sefardita passada e disse-lhe que desejava morrer como judeu.
Havia tradições, como as velas de Shabat, com as quais o jovem Artur Carlos estava familiarizado desde criança, mas estas faziam parte de sua memória, assim como da memória dos seus antepassados. Até que um dia, em Flandres, na Bélgica, Barros Basto entrou na tenda de um oficial francês num sábado, viu duas velas a iluminar o local e perguntou qual era o motivo. A resposta era óbvia. E esse momento foi tão decisivo que ele quis retornar à antiga fé dos seus antepassados.
Barros Basto, que nasceu em Amarante em 1887 como católico, decidiu enveredar pelo caminho de uma nova fé: a mesma que séculos atrás tantas pessoas foram obrigadas a abandonar, incluindo os seus antepassados. A lei mosaica, que também havia sido mantida, de uma forma ou de outra, entre os filhos dos forçados à conversão, tornar-se-ia a meta de vida do capitão, acompanhada do interesse em fazer os outros também retornarem às suas origens hebraicas.
O arquivo nacional de Portugal na Torre do Tombo tem mais de 40.000 arquivos da Inquisição, cujo principal objetivo era perseguir os “cristãos novos” acusados de viver secretamente como judeus ao longo dos séculos, apesar de o rei Manuel I de Portugal ter prometido aos convertidos que não seriam investigados pelas suas práticas religiosas na esfera privada, o que os encorajou a manter os rituais e tradições de sua antiga religião, que em muitos casos sobreviveu à passagem do tempo.
O processo de conversão ao judaísmo do capitão Barros Basto – que também era maçom – começou no Porto e em Lisboa, na Sinagoga Shaarei Tikvah, mas sem sucesso. Marrocos seria então o lugar da sua conversão e retorno ao judaísmo.
Na cidade de Tânger ocorreu a conversão formal. Depois de regressar a Lisboa, casou-se com uma judia daquela comunidade, que antes não o tinha aceitado. Assim, Lea Israel Montero Azancot tornou-se Leah Barros. E, a partir desse momento, ela iniciaria a campanha de redescoberta e reaproximação dos cripto-judeus.
Barros Basto sentira-se judeu antes mesmo de se converter, em 1920; no entanto, ele encontrou dificuldades ao longo do caminho, e quase teve que ir até à Argélia para prosseguir com a sua conversão. Ele deve ter pensado em todos os outros que, como ele, eventualmente desejariam retornar à fé de seus pais.
No Porto, onde não havia mais de 20 judeus, o capitão Barros Basto, ou Abraham Israel Ben Rosh – o seu nome hebraico – fundou um jornal, que chamou de “Halapid” – A Tocha – e começou a viajar para as aldeias vizinhas onde se podiam encontrar Conversos, a fim de fundar uma nova comunidade com essas pessoas e construir uma sinagoga que mais tarde seria chamada: Mekor Haim – fonte de vida.
Barros Basto tinha aprendido hebraico antes da sua conversão, a tal ponto que mais tarde ensinou a língua dos seus antepassados na Universidade do Porto. Interessou-se também pela história judaica medieval portuguesa, entre outros assuntos. Ao longo da sua vida, escreveu inúmeras textos sobre temas judaicos.
O plano inicial e ideal de Barros Basto era captar a atenção dos Conversos e atraí-los para o seu projeto comunitário-religioso. De facto, começou muito cedo a angariar os fundos necessários para a construção de uma sinagoga. O projeto era tão ambicioso e estruturado que, juntamente com outros membros da sua comunidade, estabeleceram uma yeshiva, com o objetivo de ensinar aos Conversos os preceitos da Lei de Moisés e a história do povo hebreu. Essa yeshiva funcionou durante nove anos.
Em Trás-os-Montes, no norte de Portugal, na fronteira com Espanha, na zona do importante rio Douro, os Conversos encontravam-se em aldeias rurais. Chaves, Bragança e Mirandela são algumas das cidades que a sub-região de Trás-os-Montes incluiu. O capitão Barros Basto percorreu este território em busca dos seus irmãos escondidos e perdidos, outrora obrigados a isolarem-se em comunidades muito pequenas e fechadas.
A situação política em Portugal mudou quando ocorreu um golpe de estado militar em 1926, devolvendo à Igreja Católica uma posição muito importante na sociedade. Não seria do interesse da Igreja que os “marranos” voltassem ao judaísmo. Da mesma forma, a ditadura fascista de Oliveira Salazar assumiu o poder por volta de 1932, impondo a tradição católica e o conservadorismo dos seus costumes como regime, semelhante ao caso espanhol com o Generalíssimo Franco.
Todos os esforços do capitão Artur Carlos encontraram um grande obstáculo quando uma carta anónima denunciou aos seus superiores um comportamento imoral da sua parte. Acusado de homossexualidade e de perverter a juventude da yeshiva, foi aberto um julgamento contra ele.
Essa calúnia não teve sucesso, mas trouxe à luz que o próprio capitão havia circuncidado – brit milah – junto com um médico, os seus alunos da yeshiva. Como resultado, 9.000 cripto-judeus se voltaram para o judaísmo, graças a ele. Em 1937, foi expulso do exército, por ser considerado moralmente inapto para continuar na instituição. Não podia ser acusado de homossexual, mas podia ser acusado de judaísmo, pois a Inquisição, que flagelara de maneira atroz toda a Península Ibérica, sem dúvida deixara um resquício antijudaico.
Como Dreyfus, o seu judaísmo pesou muito na hora de assinar a sua demissão. No entanto, Dreyfus foi defendido por Émile Édouard Charles Antoine Zola, destacado escritor francês, no seu artigo J’Accuse – Carta ao Presidente da República – no jornal L’Aurore.
Este apelo, em forma de carta aberta, foi a chave para a reintegração do cargo, nome e honra do capitão Dreyfus. No caso do capitão Barros Basto, nunca houve revisão do caso em vida e ele morreu com a desonra que lhe foi causada pelos inimigos do judaísmo.
Apesar do revés, o capitão Barros Basto conseguiu em 1938 inaugurar a sinagoga, que se tornara seu sonho: Mekor Haim, ou a Sinagoga Kadoorie (a maior de toda a Península Ibérica), em homenagem aos seus principais patrocinadores, uma proeminente família judia iraquiana estabelecida em Xangai, na China. Esses judeus Mizrahim decidiram erguer o edifício em homenagem à sua matriarca – Laura Kadoorie – que descendia de judeus expulsos de Portugal em 1497.
Esta sinagoga não conseguiu concentrar a comunidade de Conversos que Barros Basto esperava. O escândalo e, finalmente, a sua destituição do cargo também fizeram com que os seus alunos e as famílias que ele lentamente tinha trazido ao judaísmo ficassem com medo e no final não quisessem se associar a Mekor Haim.
Desde o início, a Inquisição criou um fenómeno de separatismo e desconfiança por parte dessas pessoas. Terem sido obrigados a se converterem e, mais do que isso: terem sido perseguidos, julgados e até condenados à morte, eram razões suficientes para se quererem afastar daquele mundo.
No entanto, a sinagoga serviu um grande propósito após a Segunda Guerra Mundial, tornando-se um abrigo para centenas de judeus da Europa de Leste que fugiam do horror do regime nazi. Barros Basto, portanto, também poderia ser considerado um “justo entre as nações”.
A Sinagoga do Porto é a obra mais importante do Capitão Barros Basto. Representa a liberdade, a luta constante e o grande carinho que o seu fundador tinha pela sua causa, juntamente com as famílias Ashkenazi da comunidade do Porto que o apoiaram neste nobre projeto.
O capitão Barros Basto morreu no Porto em 1961, levando para o túmulo a injustiça de ser acusado do “crime” de ser judeu. Ele foi o líder da sua comunidade até o fim. Ao contrário de Dreyfus, de uma forma ou de outra, Barros Basto morreu de desgosto moral.
Nunca foi reintegrado no exército, nem o seu caso foi revisto até 2012, data em que o Estado português reintegrou postumamente Barros Basto como capitão, graças aos esforços da sua neta Isabel Ferreira Lopes. Então, viva a memória de Barros Basto.
Pode ler o artigo original em inglês
aqui