Pensando racionalmente, o legado da
judiaria medieval espanhola já deveria ter desaparecido há muito tempo. A
comunidade judaica espanhola, a maior e mais influente da Europa daquele tempo,
foi expulsa em 1492 e dispersa aos quatro ventos, distribuindo-se ao longo do
Médio Oriente, dos Balcãs e do Norte de África. Poucas culturas podem ter
esperança de sobreviver a um trauma coletivo tão catastrófico, tendo sido os
seus membros obrigados a reconstruir as suas vidas em terras estrangeiras.
No entanto, e contra todas as
probabilidades, as tradições culturais linguísticas e religiosas únicas dos
judeus espanhóis continuam vivas, e Israel e o povo judaico deveriam fazer mais
para proteger e desenvolver esta parte tão importante do património do nosso
povo.
Pude vislumbrar um pouco deste valioso
legado no seder deste ano, quando me juntei à minha nora e à sua
família, parte da qual é de origem judaico-turca, para celebrar a narração anual do êxodo do Egito.
Subitamente, quase sem aviso, fui exposto
a novas canções, diferentes melodias e até excertos de leitura em ladino, ou
judaico-espanhol, um dialeto emotivo onde se misturam termos em espanhol
antigo, hebraico e aramaico.
Tendo crescido com os costumes e melodias
asquenazitas habituais, foi enriquecedor poder conhecer outras tradições
judaicas, vividas com brio, e tão autênticas e legítimas como as nossas. Com um
pouco de imaginação, podemos até visualizar um grupo de judeus espanhóis exilados
sentados à mesa do seder em Izmir, Nápoles ou Serajevo nos séculos XVI
ou XVII, a entoar algumas das mesmas melodias. A história do Ladino reflete de
muitas maneiras a história dos últimos seis séculos do povo judaico, que
sobreviveu à expulsão, à assimilação e ao genocídio.
Tal como o Ídiche, a língua franca de
muitos judeus asquenazitas ao longo de muitas gerações, o Ladino serviu como
tela cultural, uma tela utilizada por muitos judeus sefarditas para compor
poesia, dissertar sobre a Torá e debater
questões de importância cultural e mística, bem como para divulgar
investigações nos domínios da História, da Matemática ou da Astronomia.
Talvez a mais conhecida obra escrita em
ladino seja o Meam Loez, um comentário sobre a Bíblia que combina exposições
talmúdicas, midráshicas e haláchicas, iniciada pelo rabino Yaakov
Culi em 1730 em Constantinopla e continuada por outros depois da sua morte. A
obra, que está traduzida ao hebraico e ao inglês [e também ao espanhol], tem
ganho cada vez mais popularidade, tanto entre sefarditas como entre
asquenazitas.
Durante centenas de anos, até ao
Holocausto, o ladino era a primeira língua para muitos judeus sefarditas na
região do Mediterrâneo. Mas o assassinato de grandes números de judeus falantes
de ladino, em locais tais como a Grécia e a Bósnia, por parte dos alemães e
seus cúmplices na época da 2ª Guerra Mundial, colocou em perigo o bem-estar e o
futuro deste idioma.
As estatísticas sobre o número de falantes
de ladino que existem no mundo hoje em dia variam entre apenas dezenas de
milhares a duzentas mil. Mas como a NBC News comentou há dois meses numa
reportagem, “O que é indiscutível é que a maior parte dos falantes nativos de
ladino são pessoas mais velhas, e a maior parte dos seus filhos cresceu a falar
outra língua”. Por outras palavras, a riqueza desta língua e cultura está em
perigo de extinção se não forem empregues maiores esforços para a preservar.
Felizmente, estão a ser postas em prática
algumas medidas para impedir que isto aconteça. Este ano, pela segunda vez,
teve lugar no Centro de História Judaica, em Nova Iorque, o Dia Internacional
do Ladino, um dia anual organizado pela Federação Sefardita Americana e outras
entidades, que incluiu um festival dedicado à música e cultura ladinas. Também
houve eventos similares em outras cidades.
O Ministério da Cultura Israelita tem a
Autoridade Nacional para a Cultura Ladina, estabelecida pelo Knesset
em 1996, que concede bolsas para encorajar os estudantes
a aprender a língua, patrocina traduções e produz livros e CDs com histórias e
canções em ladino.
Alguns especialistas, tais como o Dr.
Eliezer Papo, da universidade de Ben-Gurion, e o Prof. David Blunis, que lidera
o programa de estudos ladinos na Universidade Hebraica de Jerusalém, têm estado
a trabalhar há anos para aumentar o conhecimento da população geral acerca do
ladino, dando cursos e escrevendo artigos e livros.
E os alunos mais corajosos até podem
encontrar vídeos com aulas para aprender ladino no YouTube!
Mas por várias razões, este idioma não tem
conseguido a atenção merecida, recebendo menos recursos e fundos que outros
programas similares que têm por objetivo reviver o Ídiche. Chegou a hora de
mudarmos isto e de a cultura e tradições sefarditas e ladinas serem salvas e
fortalecidas com o mesmo ardor investido na preservação do património cultural
asquenazita.
As organizações judaicas norte-americanas,
em conjunto com o governo israelita, deveriam estar a fazer mais para manter o
ladino e a sua cultura vivos e de boa saúde – porque o ladino e tudo o que ele
engloba são parte integrante da longa e sinuosa passagem do nosso povo pelo
palco da História. Permitir que ele desapareça ou se transforme num fóssil
seria uma afronta à história judaica e uma perda cultural insubstituível.
Há mais de sete décadas, os nazis desferiram sobre o Ladino e a sua cultura um golpe quase mortal. Através da indiferença e da apatia, corremos o risco de que o golpe se revele fatal, o que não podemos permitir que aconteça.